MÚSICA

Espetáculos virtuais: orquestras e corais se reinventam na pandemia

Ensaios e apresentações on-line já fazem parte da rotina dos intérpretes, que viram no isolamento uma chance de aprendizado

Com a pandemia do novo coronavírus, uma das classes mais afetadas pelo isolamento foi a artística, que tinha o público — aglomerado — como parte fundamental dos espetáculos e apresentações. No entanto, a reinvenção em meio ao caos também é uma arte. Realizar um coral à distância, por exemplo, parecia uma tarefa impossível, e uma orquestra sem plateia era inimaginável antes de 2020. Agora, essas atividades não só continuam firmemente ativas de forma virtual, como também estão dando um show de resiliência e perseverança.

Resiliência é um substantivo feminino da língua portuguesa muito utilizado na psicologia. Segundo o dicionário, ele pode designar a capacidade de se adaptar à má sorte e às mudanças. Foi assim que a Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) lidou com a mudança de planos para este ano, no qual celebram-se os 80 anos de existência do conjunto sinfônico. O aniversário, que seria comemorado com um grande concerto, precisou ser adaptado para o formato digital, o que, no entanto, não impediu os músicos de celebrarem a data junto ao público.

“O meio musical é muito conectado, quando a gente percebeu que a pandemia avançava na Europa e nos Estados Unidos, já começamos a trabalhar na conversão da temporada que estava prevista para as plataformas digitais”, explica a diretora geral da OSB, Ana Flávia Cabral, que se antecipou para tentar criar a atmosfera do concerto na casa das pessoas, antes mesmo de as medidas de distanciamento social serem adotadas no Brasil. “Os músicos usam traje de gala e os vídeos são postados em dias e horários específicos, para tentar recriar a expectativa da ‘noite do concerto’. O intuito sempre foi levar a beleza da música para as pessoas que estão passando por um momento tão chocante e difícil. Queríamos trazer uma mensagem positiva, de afeto”, conta.

Cicero Rodrigues/Divulgação - Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) em turnê pela Europa antes da pandemia

“A música não pode parar”

O primeiro projeto virtual da OSB consistia em músicos tocando individualmente de suas casas, dispondo de seus próprios equipamentos. Foram 35 vídeos em 35 dias ininterruptos de trabalho, que alcançaram mais de 5 milhões de visualizações. As redes sociais foram fundamentais para a divulgação do projeto, cujo sucesso motivou a gravação da série comemorativa de aniversário. Agora, com aprimoramento técnico, os concertos virtuais contarão com grupos que irão ao ar a partir do próximo dia 24, com um repertório adaptado e menos instrumentos por série, mas sem comprometer em nada a qualidade e a beleza das apresentações.

Além disso, o projeto Reconexões Musicais, que visa a democratização da cultura e do ensino de música, foi convertido também para as plataformas digitais. Qualquer um pode ter acesso ao conteúdo das aulas, disponibilizadas nas redes sociais da OBS.

“A música não pode parar e o papel social da orquestra é esse, promover ferramentas e meios para que a sociedade atravesse períodos históricos e problemáticos da forma menos dolorosa possível”, explica a diretora, que completa: “A maior lição que a gente aprendeu foi que, de fato, a música tem um poder de transformação inigualável. Não há barreiras para a música, ela está em todos os lugares. Essa foi a nossa forma de conectar as pessoas e tem sido um grande aprendizado para todos nós, como seres humanos e como intérpretes”.

Juntos, mesmo separados

Uma das grandes belezas de assistir a uma apresentação de coral é conseguir perceber a sintonia e a cumplicidade que existe entre os cantores. O estar junto, nessa atividade, é fundamental para que a emoção seja transmitida ao público. Porém, desde março, grupos de corais dentro e fora do Brasil precisaram cessar seus ensaios e fechar suas portas, uma vez que as gotículas de saliva expelidas durante o ato do canto poderiam ser altamente transmissoras do vírus que causa a covid-19. Parecia ser um beco sem saída, mas alguns artistas não apenas contornaram a situação, como também fizeram dela um elemento fortificante.

Foi o caso da regente Isabela Sekeff, que orienta cinco corais no Distrito Federal. Um deles, o coral Cantus Firmus, já representou o Brasil em premiações internacionais e em 2018 recebeu duas medalhas de ouro na maior competição de corais do mundo, a World Choir Games. Acostumada a reunir os coristas para ensaiarem em conjunto, Sekeff se viu em uma situação tão desafiadora quanto as competições mundo afora: “No começo, fiquei um pouco receosa e achava que nada poderia substituir um ensaio presencial”, conta a regente. “Os maiores desafios são a falta de contato físico, a saudade de abraçar, de trocar experiências, da convivência.”

Os coros virtuais funcionam assim: os cantores ensaiam em suas casas, sob orientação da regente, e, depois, gravam um vídeo, que terá o áudio editado por um técnico. Quando todos estiverem gravados e editados, outro profissional irá juntar um por um, formando então um conjunto único e harmônico. “Isso tem possibilitado desenvolver as habilidades individuais de cada um. Percebi melhora significativa em muitos cantores, porque eles estão passando por um momento de auto escuta muito grande. É incrível como alguns conseguiram melhorar em 6 meses o que em anos não tinham melhorado”, explica a regente.

Além dos ensaios individuais, são feitos também encontros semanais com todo o grupo, para que os membros possam matar a saudade dos colegas e manterem firme o vínculo da equipe. “Entrar no palco para cantar é uma experiência muito forte, e essa experiência da pandemia também é. Por isso, nós vamos passar por ela juntos”, conta Isabela Sekeff, completando: “Quando vemos os vídeos temos, a sensação de que somos um só e isso nos motiva muito. Apesar de todas as nossas diferenças, naquele momento somos um, somos fortes e somos vencedores”.

Mostra de corais

Na última sexta-feira (4/9), foi realizado o Congresso Internacional de Regentes de Coros, reunindo regentes e coristas de todo o Brasil, além de especialistas e palestrantes nacionais e internacionais. O evento, promovido pela Associação Brasileira de Regentes de Coros (Abraco), ocorreu inteiramente de forma virtual e contou ainda com uma mostra de corais em duas versões: uma antes da pandemia, mostrando apresentações gravadas quando o isolamento não era uma realidade, e outra depois da pandemia, com as apresentações dos coros virtuais.

Edgar Marra/Divulgação - Maestro David Junker (ao centro) comanda apresentação antes da pandemia

“A atividade coral é, se não a pior, uma das mais difíceis de se realizar nesse tempo de pandemia. A intenção foi trazermos de volta esse movimento”, conta o presidente da Abraco, David Junker. “O sentimento nos grupos de Whatsapp é de algo que nunca aconteceu antes”, completa o maestro, que rege ainda dois coros em Brasília, o Coro Sinfônico Comunitário da UnB e o Madrigal-UnB.

*Estagiária sob supervisão de Fernando Jordão