Questões sobre o Brasil miscigenado

Com conteúdos agregadores ou controversos, filmes integrados à mostra de cinema negro podem ser conferidos junto ao documentário Dentro da minha pele

Ricardo Daehn
postado em 02/10/2020 18:47
 (crédito: Daiane Rosário/Divulgação)
(crédito: Daiane Rosário/Divulgação)

De um lado, seis mulheres envolvidas com realização em cinema e dispostas a mudar parte do mundo; do outro lado, o mundo ao alcance dos dedos e dos olhos, com a nova versão virtual da Mostra Itinerante de Cinemas Negros Mohamed Bamba (Mimb). Idealizadora, além de coordenadora do Mimb e das ações do grupo das diretoras, fotógrafas e produtoras envolvidas, Daiane Rosário, há quase 10 anos atuante no mercado, percebeu ainda estudante da UFBA (Universidade Federal da Bahia), uma grave lacuna. “Não tinha diálogo com representantes de cinema que tivessem contato com o corpo negro, com a complexidade de personagens negros. Era das poucas alunas negras da classe, e Mohamd foi um pesquisador e professor, e o único professor negro que tive durante toda minha trajetória universitária. Ele me mostrou haver um lugar possível de existir. Há um cinema negro passível de identificação. Era um meio de se ver na tela, de outra forma que não objetificada”, explica Daiane.
Ampliar espaços, janelas de exibição para os filmes (em 2020, integrados à plataforma Videocamp até o dia 9 de outubro) foi dos desejos inaugurais da mostra que chega à terceira edição. No começo, houve surpresa grande, dada a repercussão muito alta e agregadora. “A adesão ao evento teve um fator de multiplicação. Muitas pessoas participam: desde os diretores aos espectadores. É uma mostra itinerante e nossa principal pauta era levar o cinema para a periferia de Salvador. Na primeira edição, contemplamos cinco bairros periféricos. Não só com exibição de filmes, mas estimulando a formação em cinema também. Nosso povo precisa disso. Na mostra, nos deparamos com pessoas que pela primeira vez assistiam a um filme na grande tela. Nunca tinham ido ao cinema!”, celebra Daiane, diante do prazeroso efeito de possibilitar o acesso à cultura. O Mimb segue independente, sem nenhum tipo de financiamento público ou de editais.
A idealizadora da mostra busca atentar para a reinvenção de história negras e reconstrução da realidade por meio de agentes negros nas narrativas. “Pessoas pretas não se resumem a racismo. Exaltamos a cultura e a representação negra, não falamos sobre racismo porque isso é uma coisa que vivenciamos, e, com ele, acordamos, sofrendo. A gente quer falar sobre amor, sobre as nossas histórias. Não queremos prezar a forma de ser objetificado, endossar acontecimentos seguidos ao colonialismo: o olhar branco sobre os corpos negros. Queremos desconstruir isso. ”, esclarece Daiane Rosário.

Representação

Com curadoria para filmes nacionais e internacionais, o Mimb integra diversos países e vivências. “Lidamos com uma movimentação geopolítica. Conectamos comunidades, agentes culturais locais e há ainda pesquisa das necessidades de demandas dos locais periféricos (em que o evento chega)”, explica a coordenadora. Parceria com o Goethe Institut e contatos junto a festivais em Burkina Fasso, por exemplo, junto com a ação de profissionais como Alex França e Janaína Oliveira aumentam a cuidadosa seleção de fitas a serem exibidas. “Até para contornar um sistema excludente e racista, muitas vezes, convidamos filmes que às vezes ficariam na invisibilidade. Queremos agregar”, explica Daiane Rosário.
Depois de ter 150 filmes mostrado para mais de 7 mil pessoas, o Mimb chega na edição de 2020 revelando 15 obras de artistas negros. A seleção alinha títulos como Cavalo (de Rafhael Barbosa e Werner Salles), sobre sete dançarinos em busca das raízes da ancestralidade e Ontogénese (de Jared Oscar José de Oliveira Nota), em torno da denúncia feita por fotojornalista que presencia empresa descartando resíduos tóxicos no mar. Mesmo desconectados de modernidade, por experiência de vida, em Xidzedze (em dialeto, Tempestade de vento, filme assinado por Wilford Machili), moçambicanos discorrem sobre desastres naturais. Já Motriz (de Taís Amordivino) relata, no interior mineiro, a vida de Bete, distanciada fisicamente das filhas. O amor paterno dá liga para a trama de A gravidez é nossa (de David Aguacheiro e Tina Krüger). No filme, mudanças sociais são pretendidas por quatro homens diferenciados, que discutem contracepção e tarefas domésticas, além de quesitos de igualdade e respeito. Árvores ancestrais — Tempo e cura é o tema da Mimb 2020, dada a pandemia. “A nova edição parte muito disso: é um tempo que pede para gente se cuidar, se reinventar, no sentido de olhar um pro outro e de olhar para si. É um tempo que não é o nosso: a gente entende a árvore como um grande ciclo da vida. Isso representa muito sobre o tempo e a cura”, observa Daiane Rosário.

» Pelo direito à igualdade

Recém-premiado pela trilha sonora composta para o filme que expõe racismo Todos os mortos (exibido no Festival de Gramado), o historiador e músico Salloma Salomão é destaque ainda noutra produção de cinema: o documentário Dentro da minha pele. No longa, um discurso de igualdade racial vai à instância extremada de radicalidade. Conduzido pelos codiretores Toni Venturi e a socióloga, descendente de negros e indígenas, Val Gomes, o filme (presente no streaming) desfila o ativismo de pessoas como a trans Neon Cunha, junto com emaranhadas questões de assassinatos e escravidão relacionadas a ocupação de papéis e lugares na sociedade.

TRÊS PERGUNTAS PARA

» Toni Venturi

Como administrou culpas no processo de reparação proposto pelo filme?
Não creio que faço cinema para me curar, mas para crescer e fazer algo positivo para esta sociedade que caminha a passos largos para a sua autodestruição. Este documentário, entre todos de minha carreira de nove longas, é o que gerou a maior ressignificação pessoal, do ponto de vista político e existencial. No âmbito político, entendi a centralidade da questão racial na formação país e, no subjetivo, a descoberta dos meus privilégios.

Salloma Salomão expõe a situação mais controversa do filme. Temeu fazer apologia de crime, ao manter as declarações no longa?
Pensamos muito sobre a resposta dele e o momento de suspensão que criou na entrevista, minha reação espontânea de não saber se entraria ou não no filme. Mas, ao longo do processo de montagem, o qual Val Gomes assumiu plenamente seu lugar de diretora, entendemos que os embates onde eu era confrontado (o branco privilegiado) funcionava como a novidade no debate da questão racial. Então, não tivemos dúvidas de que a resposta bombástica do Salloma deveria fazer parte da obra.

Privilégio e direito rendem discussão no filme. Você acha que chegou a confundir os conceitos?
Acho que o branco de classe média, que teve acesso à boa escola e a oportunidades de ganhar o mundo e prosperar na vida, enxerga estes portais como um direito natural. Efetivamente seriam direitos, se fossem acessíveis a todas e todos os jovens brasileiros. Passa a ser um privilégio quando é acessível a uns poucos, e não a todos. Mas como vivemos encapsulados em nossas bolhas brancas de classe média é bem fácil confundir uma coisa com a outra. O Brasil está finalmente se dando conta disso.

» Val Gomes

“Negra muito abusada” e “preto, mas estudioso” são frases do filme que agridem. Onde se sentiu mais fragilizada, no processo de desvelar tanto preconceito?
No Brasil, ser negro ou negra é lidar com esse tipo de afirmação ou insinuação pejorativa, cotidianamente. Essas frases dizem mais sobre o racismo e ao não assumi-las há uma forma de resistência. Pessoalmente, não me senti fragilizada, mas, na montagem do filme, senti todo o peso da história do Brasil, seja a história coletiva ou nas narrativas das personagens do filme.

Como capitalizar uma postura afirmativa, na nossa sociedade, sem tangenciar o vitimismo, apontado por terceiros?
É evidente que sociedade brasileira tem uma visão distorcida de conceitos e práticas do que são: justiça, direitos e reparação. A postura afirmativa está em você discutir a situação como ela é, empregar os termos adequados, abrir-se para o debate e ter paciência para contribuir no letramento racial das pessoas. Vejo esforços de mudanças de uma parcela da sociedade, por exemplo, há instituições privadas que promovem ações afirmativas, como um magazine que criou um processo seletivo para trainee para as pessoas negras. As reações a essa medida também dão uma ideia da sociedade que vivemos.

O filme embute dados jurídicos vigentes no país. Qual a descoberta mais estarrecedora, no descortinar de um aparato
que coroa privilegiados?
Acho que essa pergunta deveria ser feita ao Toni Venturi (risos). Não foi uma descoberta feita por meio do filme, mas, todos os dias, eu penso: Como uma sociedade pode dormir e lidar “normalmente” em seu cotidiano sabendo que a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado? Dessa maneira, para um jovem negro é quase um privilégio estar vivo, quando na verdade deveria ser um direito inalienável para todos os jovens brasileiros, e não só para os jovens brancos.

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