Quem acompanha o trabalho de Emicida sabe que o rapper foge dos estereótipos impostos pela sociedade. Ele mesmo brinca com isso em Cananéia, Iguape e Ilha Comprida, canção do disco AmarElo (recém-indicado ao Grammy Latino). No começo da música, num diálogo com a filha mais nova Teresa, que toca um chocalho entre risadas, diz: “Sem risadinha porque aqui é o rap, mano. Onde o povo é bravo, entendeu? (…) Pra trabalhar nesse emprego de rapper você tem que ser mau. Será que o Brown passa por isso? Ou o Djonga? Ou Rael?”
Essa “fama de mau” nunca pegou em Emicida. Pelo contrário, o trabalho dele sempre esteve acompanhando de uma leveza e uma suavidade, mesmo quando toca nas feridas sociais. Essa nuance fica cada vez mais evidente nos projetos. Nas últimas semanas, o otimismo do artista esteve latente com os lançamentos do documentário AmarElo Prisma no GNT, em que, a partir de narrativas pessoais aborda soluções coletivas para uma sociedade melhor; do single Trevo, figuinha e suor na camisa com Ivete Sangalo em parceria com o projeto Natura Musical, inspirado numa pesquisa sobre sonhos de mais de sete mil mulheres; e do livro E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas, o segundo infantil da carreira, sucessor de Amoras. Em entrevista ao Correio, Emicida fala dos novos projetos e de como transforma cada trabalho num degrau para melhorar individualmente e coletivamente.
Num momento como esse que a gente vive em meio a uma
pandemia e a um obscurantismo, qual é a importância de trazer mensagens positivas e resgatar em muitas pessoas a força do sonhos?
Bom, sou adepto da filosofia de que pra baixo todo santo ajuda, então, a gente já está atravessando um tempo desesperador e desafiador. É fundamental que a gente consiga resgatar a nossa positividade, porque, sem ela e sem uma relação otimista com a realidade, a gente não vai conseguir sair desse buraco. A esperança vai nascer disso, sacou? Não é nem a importância, é essa urgência de a gente conseguir compartilhar alguma positividade. Se você observar essa música, tanto em termos de arranjo quanto de letra, ela tem uma atmosfera do sol nascendo, sabe?! E o sol vai nascer amanhã. É como um ditado africano que diz: “Não importa o quão densa seja a noite, depois dela o sol sempre vem”. É isso que a gente faz quando compartilha uma energia positiva como essa.
Como veio o convite para essa parceria com a Natura Musical e com a Ivete Sangalo?
A gente trabalha com a Natura há algum tempo. Existe uma grande admiração pela construção deles e pelo cuidado que têm com o que fazem, além de uma gratidão enorme por tudo o que eles constroem por meio do edital (a gente estando envolvido ou não). Muitos artistas importantes do Brasil passaram pelo Natura Musical. Alguns deles, inclusive, são artistas que, com o passar do tempo, se transformaram em um ponto cego para indústria e o Natura Musical acaba fazendo esse resgate e jogando luz em cima dessas trajetórias, que são carreiras super valiosas, mas que, às vezes, a cultura brasileira contemporânea esquece de reverenciar como deveria. Então a experiência de estar perto deles acaba fazendo com que sempre tenha uma troca muito bacana. Com relação a Ivete, a gente é fã dela há muito tempo. E quando você chega mais perto dela, percebe que ela é maior ainda: em potencial artístico e genialidade, mas também em humanidade. A Ivete é gigante. Essa parceria é um verdadeiro caso de unir o útil ao agradável numa experiência maravilhosa. A Natura convidou a gente para realizar uma coisa que poderíamos fazer em qualquer outra situação, porque a Ivete é apaixonada por esse tema e eu também sou, sacou? E essa música, Trevo, figuinha e suor na camisa, é só a primeira das experiências que saíram do estúdio.
A música vem de uma pesquisa que mostra os sonhos de 7,5 mil mulheres de todo o país. Como ler essas aspirações te tocou e como foi transformá-las em músicas?
Quando a gente lê um pouco sobre informação, tem a impressão de que o Big Data é alguém que passeia por dentro da cabeça das pessoas tentando prever os comportamentos. De alguma forma, é isso mesmo que acontece. Pude passear por dentro da simplicidade do sonho de muita gente ali, e ver que muitos deles são parecidos com os meus. A coisa mais encantadora de tudo é ver a humanidade imensa que tem no brasileiro. Saí com uma impressão muito bonita e grandiosa, é como se o sonho de todo mundo, no final do dia, fosse viver mais e poder ver o sorriso no rosto do filho, poder fazer um curso, poder comprar uma bicicleta, ver o mar... Isso é de uma imensidão absurda. Transformar sonho em música foi um desafio, claro, mas também foi uma experiência extremamente prazerosa e até terapêutica.
O que acha que trouxe de Ivete para a faixa? E como foi fazer essa fusão entre os trabalhos de vocês?
Tenho uma admiração muito grande pela Ivete, porque eu sou, antes de muitas coisas, um imenso fã de Wilson Simonal. A energia dele é incrível, é um artista que precisa ser resgatado e homenageado com muito mais frequência do que acontece. E a admiração pela Ivete vem desde quando ela gravou Sá Marina. Sempre observei essa capacidade dela de colocar uma energia extremamente positiva em todos os lugares onde coloca a voz. Quando comecei a escrever a música, queria trazer essa energia dela, por isso que o arranjo vai desabrochando e o desabrochar completo é o refrão. No momento em que a flor se abre completamente, ali, musicalmente, isso está representado através da voz e da energia que a Ivete Sangalo consegue imprimir dentro de uma música. Fazer essa fusão foi simples, fácil, porque eu sou apaixonado por música brasileira de todas as vertentes, acho que a nossa música é uma das maiores do mundo... Na verdade, nem é uma das maiores do mundo, é a maior do mundo. E a Ivete é uma ótima representante disso.
Já que a música fala sobre sonhos, quais ainda são seus sonhos?
Meu maior sonho, neste momento, é conseguir convencer as pessoas de que elas são mais felizes com uma horta do que com um carro!
Você lançou segundo livro infantil, E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas. Como a paternidade tem te influenciado a fazer conteúdos para o público
infantil?
Desde 2013, na verdade até antes disso, queremos mostrar a amplitude e o alcance da poesia no rap. Ela não é restrita apenas a um lugar ou a um tipo de gente ou a uma faixa etária. Eu me sinto muito orgulhoso de, na minha trajetória, ter conseguido criar atmosferas em que todas as pessoas conseguem se sentir incluídas, passando por todas as idades. Eu me sinto muito feliz, porque minhas filhas podem participar de qualquer um dos trabalhos que eu vier a fazer, já que aquele ambiente também pertence às crianças. Mesmo, às vezes, ele sendo um pouco mais denso, ele também sugere que as emoções não são sempre positivas e a gente aprende a lidar com elas. Não sei se isso nasce necessariamente só nesse momento mais recente, muito pelo contrário, é uma construção grande. Claro que eu fui provocado no primeiro momento pela experiência da paternidade, mas se você for voltar lá depois da primeira mixtape, a gente já lança um single que chama É como um sonho pra mim. Essa música já tinha uma experiência de doçura profunda, assim como exercícios da primeira mixtape também, como as músicas Só isso ou Outras palavras. O que acontece agora é que a gente tem estrutura para desenhar isso e embalar de uma maneira que conversa diretamente com as crianças também.
Como foi o processo de criação do livro?
Fico sempre resmungando as histórias para ver se fazem sentido dentro da minha cabeça. A inspiração inicial foram todas as madrugadas que eu passei desenhando ou fazendo música e foram interrompidas para ir chacoalhar a Teresa, a minha filha mais nova. Escrevi muitas músicas a respeito disso, não lancei nenhuma ainda, mas escrevi várias, e também esse texto do livro. Escrevi numa viagem que a gente fez para o Vietnã. Minha família inteira foi dormir, a gente estava em Ha Long Bay. Tudo silencioso no meio daquelas montanhas rochosas... Aí, eu sentei na varanda do nosso barco e escrevi no meio da escuridão, porque estava refletindo muito sobre pacificar essa relação, foi assim que nasceu essa criança.
Há alguns dias, o GNT estreou o documentário AmarElo Prisma, que foi mais um desdobramento do disco. Quando você percebeu que o conceito desse álbum poderia se destrinchar em outros trabalhos?
AmarElo já nasce com uma ambição maior do que propriamente falar sobre ser um disco. Lançar uma sequência de faixas é simples. Nem é mais uma obrigação no nosso tempo. Se quisermos. podemos só lançar singles. Se você observar, por exemplo, no universo do funk, ninguém tem discos. Todos vivem de singles. Às vezes, um artista construiu uma carreira com uma música só. No nosso caso, a gente tem uma ambição maior, porque a gente entende que a continuidade de um material intelectual, musical, folclórico, político, existencial e filosófico é muito grandioso. A gente não consegue se dissociar de toda essa grandiosidade no momento em que vamos fazer qualquer tipo de projeto.
Como assim?
O Prisma nasceu como desdobramento do AmarElo justamente porque já tem a ambição de ser um experimento social, e é assim que a gente se refere a ele desde o começo. Hoje, você tem cada vez menos barreiras quando se fala de consumo de música e vídeo. O vídeo, aliás, se popularizou numa intensidade tão grande que ele supera o consumo de música algumas vezes. Pra gente, é incrível ver que o digital propicia criar essa intersecção. Gerenciar uma carreira artística não é só CD show, turnê, merch... Tem muito mais coisas. A gente está falando sobre um estilo de vida, sobre uma visão de mundo, uma comunidade que se desenvolve em torno de um determinado estado de espírito. O que a gente está fazendo é a manutenção desse estado de espírito com a ambição de melhorar para além do individual, para melhorar também comunidades, países e, posteriormente, o mundo.
Trevo, figuinha e sour na camisa
De Emicida & Ivete Sangalo. Natura Musical. Disponível nas plataformas digitais. Videoclipe no YouTube.
E foi assim que eu e a escuridão ficamos amigas
De Emicida. Ilustrações: Aldo Fabrini. Companhia das Letrinhas, 36 páginas. Preço: R$ 29,90.
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