Vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2020, a poeta norte-americana Louise Glück, 77 anos, foi premiada pela “inconfundível voz poética, que, com uma beleza austera, torna a existência individual universal”, conforme destacou a Academia Sueca. Mas não é só pelas obras — nas quais trata da existência humana em temas como casos de amores fracassados, encontros familiares desastrosos, morte e desespero existencial — que Glück faz do universo particular algo amplo e coletivo. A premiação direciona a atenção e os olhares para a poesia feminina.
“Em certo sentido, a Louise Glück ter ganho o Nobel aponta para lugares muito interessantes acerca da natureza do prêmio em si. Há muitos anos, não se premiava uma poeta, uma voz feminina da poesia. Se consideramos que a última mulher poeta a vencer o prêmio foi Wislawa Szymborska, em 1996, podemos notar a predominância nos critérios de escolha e premiação”, comenta Piero Eyben, professor de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), poeta, e leitor da obra de Glück.
Nascida em Nova York, em 1943, a escritora chegou a estudar em duas universidades — Sarah Lawrence College e Columbia University —, porém, nunca obteve o diploma. Mesmo assim, fez carreira na academia dando aula de poesia em diversas instituições dos Estados Unidos, entre elas, Yale. Glück é autora de vários livros de poesia premiados, entre eles, Faithful and virtuous night (2014), que venceu o National Book Award, e Poems 1962-2012 (2012), que conquistou o Los Angeles Times Book Prize. O primeiro livro lançado pela escritora foi Firstborn, em 1968. A mais recente obra é uma coletânea de ensaios intitulada American originality, de 2017.
Coletividade
Apesar dos prêmios e da relevância de sua escrita, a autora não tem livros lançados no Brasil. “Sua poesia diz muito bem como deveríamos nos portar diante de pequenos desesperos, de grandes desesperos cotidianos. Ela faz com que questões muito íntimas realmente ganhem uma força de coletividade. Com sua aparente simplicidade, ela consegue captar ‘momentos estranhos’, como diz num de seus poemas mais recentes”, avalia o professor Piero Eyben.
Ganhador do Prêmio José Saramago e do Oceanos, o português José Luis Peixoto tem especial interesse por literatura inglesa e americana e conhecia a obra de Louise Glück, embora quase não haja traduções para o português. Para ele, uma das vantagens de a poeta ter ganho o Nobel é que, agora, as traduções vão pipocar nas editoras de língua portuguesa. “O trabalho de Louise Gluck traz-nos uma poesia muito clara e, ao mesmo tempo, bastante elegante e sóbria. Trata-se de uma obra que coloca o humano no centro das suas preocupações, tanto numa perspectiva mais íntima e pessoal, como enquanto reflexão ampla”, explica Peixoto.
A poeta Bruna Beber, autora de Rua da padaria e Ladainha, conheceu os versos de Louise Glück folheando a revista The New Yorker na casa de um amigo. Fisgada pelo estilo da americana, Bruna partiu para a pesquisa, leu livros e entrevistas e, anos mais tarde, em 2020, recebeu novos poemas de um amigo. “Imediatamente depois de ler, sentei para traduzi-los. Traduzi para mim mesma, tenho costume de fazer esse exercício com poemas que gosto à primeira vista, um exercício para poder curtir por mais tempo, de aproveitar aquele encontro ao máximo. Em todo caso, esqueci esses poemas nos meus arquivos e, hoje, acordei com a notícia do Nobel”, conta Bruna, que traduziu Autumn e The empty glass (Confira tradução).
Conquista
A poeta Marina Mara ficou eufórica ao saber que o Nobel foi conquistado por uma mulher. Somente 13 mulheres ganharam o prêmio desde sua criação, em 1901, em meio a dezenas de homens. “Essa é, ao mesmo tempo, uma conquista pessoal de Louise Glück e uma conquista de todas as mulheres, principalmente as poetas e escritoras. Acredito que, após essa importante condecoração, as editoras terão interesse em traduzir e publicar os livro de Louise Glück aqui no Brasil. Parabéns à poeta, grande conquista”, diz Marina.
Louise Glück é a 16ª mulher a vencer o Prêmio Nobel de Literatura. Para José Luis Peixoto, a premiação da norte-americana poderá ter um impacto muito além da literatura. “Essa é uma mensagem muito direta nesta luta pela igualdade que tem sido travada em múltiplos palcos”, ressalta. “Ao mesmo tempo, parece-me muito justo que seja reconhecida a poesia, um gênero literário que, infelizmente, tem sido colocado à parte por um mercado com cada vez menos critério. Devemos muito à poesia. Hoje, temos a alegria de celebrá-la com Louise Gluck.”
Anna More, norte-americana professora do departamento de Literatura da UnB, cresceu com a escrita de Glück e teve muito contato com os textos da escritora durante a graduação em Harvard (Estados Unidos). Para Anna, a notícia do Nobel resgatou uma leitura que havia se perdido no tempo. “Ela é uma poeta com estilo muito uniforme, profundo e constante. Sua poesia tem força. É coloquial, mas ela trabalha com métrica e você sente uma eficiência na linguagem, é pensada e selecionada para um impacto. A linguagem eleva a temática cotidiana a um nível universal emocional”.
Reconhecer Louise Glück significa também reconhecer a delicadeza, a sensibilidade e o poder da poesia em um universo de incertezas. “Acredito que, talvez, neste contexto da pandemia, a seleção da poesia tenha um impacto porque é muito focada, ela vai no grão, no centro, torcer o significado das palavras, dos sentimentos e detalhes da vida”, analisa. Contudo, a professora pontua o desejo de, no futuro, ver premiados autores que também não integrem os centros americanos e europeus.
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O Copo Vazio
Louise Glück (Tradução de Bruna Beber)
Pedi muito; recebi o bastante.
Pedi muito; recebi pouco, recebi
pouco mais do que nada.
No ínterim? Guarda-chuvas abertos dentro de casa.
Um par de sapatos vagueando pela mesa da cozinha.
Essa não, é — coisa do temperamento. Andava
indiferente, dispersa. Eu era
egoísta, austera ao limite da tirania.
Mas sempre fui assim, desde a infância.
Pequenina, cabelo escuro, temida pelas outras crianças.
Nada mudou. Dentro do copo, a maré
insondável da sorte virou
baixou do dia para a noite.
Foi o mar? Reagindo, talvez,
às forças celestiais? Para ficar a salvo,
rezei. Tentei ser uma pessoa melhor.
Logo me dei conta de o que antes era terror
e desabrochara-se em narcisismo moral
enfim transformava-se
em crescimento real. Quem sabe
era o que insinuavam meus amigos, segurando minha mão,
dizendo que reconheciam
a violência, tanta cagada que encarei,
insinuavam (como cheguei a pensar) que eu estava louca
de dar tanto por tão pouco.
Ao passo que diziam que eu era boa (apertando minhas mãos com força) –
Uma boa amiga, pessoa boa, não uma cria do páthos.
Nada patética! Só não admitia contestação,
como uma rainha ou uma santa.
Cria-se então uma conjectura interessante.
E me ocorre que o mais importante é acreditar
no esforço, acreditar que o bem virá
pelo simples fato de tentar,
um bem imaculado do aviltante impulso inerente
de convencer ou seduzir –
Sem isso, o que nos resta?
A turbilhonar no breu do universo,
sozinhos, temerosos, incapazes de influir no destino –
O que ainda nos resta?
Artimanhas com escadas e sapatos,
truques salubres, tentativas rotineiras de construir
caráter sobre motivações vagas.
De que modo aplacar as forças monumentais?
Estou convencida de que foi essa pergunta
que destruiu Agamenon, ali naquela praia,
as naus gregas a postos, o mar
enevoado além do porto sereno, o futuro
irremediável, arriscado: foi tolo, acreditava
ter tudo sob controle. Melhor tivesse dito
Não tenho nada, estou ao seu dispor.