Prêmio Nobel

Nobel de Louise Glück é também um reconhecimento da poesia

A poeta norte-americana Louise Glück foi a vencedora do Prêmio Nobel de Literatura deste ano. Depois de 24 anos, uma mulher poeta é escolhida pela Academia Sueca

Adriana Izel
Nahima Maciel
postado em 09/10/2020 08:38 / atualizado em 09/10/2020 09:54
 (crédito: Robin Marchant/Getty/AFP)
(crédito: Robin Marchant/Getty/AFP)

Vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2020, a poeta norte-americana Louise Glück, de 77 anos, foi premiada pela "inconfundível voz poética, que, com uma beleza austera, torna a existência individual universal", conforme destacou a Academia Sueca. Mas não é só pelas obras, nas quais trata com precisão técnica assuntos familiares à existência humana - casos de amor fracassados, encontros familiares desastrosos, morte e desespero existencial -, que Glück faz do universo particular algo amplo e coletivo. Ao receber a premiação, a escritora direciona a atenção e os olhares para a poesia e para a literatura feminina.

“Em certo sentido, a Louise Glück ter ganho o Nobel aponta para lugares muito interessantes acerca da natureza do Prêmio em si. Há muitos anos não se premiava uma poeta, uma voz feminina da poesia. Se consideramos que a última mulher poeta a vencer o prêmio foi Wislawa Szymborska, em 1996, podemos notar a predominância nos critérios de escolha e premiação”, comenta Piero Eyben, professor de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), poeta, e leitor da obra de Glück.

Louise Glück, poeta vencedora do Nobel da Literatura 2020
Louise Glück, poeta vencedora do Nobel da Literatura 2020 (foto: Divulgação)

 

Nascida em Nova York em 1943, a escritora chegou a estudar em duas universidades - Sarah Lawrence College e Columbia University -, porém nunca obteve o diploma. Mesmo assim, fez carreira na academia dando aula de poesia em diversas instituições dos Estados Unidos, entre elas, Yale. Glück é autora de vários livros de poesia premiados, entre eles, Faithful and virtuous night (2014), que venceu o National Book Award, e Poems 1962-2012 (2012), que conquistou o Los Angeles Times Book Prize. O primeiro livro lançado pela escritora foi Firstborn, em 1968. A mais recente obra é uma coletânea de ensaios intitulada American originality, de 2017.

 

Coletividade

Apesar dos prêmios e da importância e relevância de sua escrita, Glück permanece distante, como pontua Eyben, principalmente do Brasil. A autora não tem livros lançados no país e, mesmo em Portugal, sua obra é pouco difundida. “Sua poesia diz muito bem como deveríamos nos portar diante de pequenos desesperos, de grandes desesperos cotidianos. Ela faz com que questões muito íntimas realmente ganhem uma força de coletividade. Com sua aparente simplicidade, ela consegue captar “momentos estranhos”, às vezes “no fundo fraudulentos e profundamente verdadeiros”, como diz num de seus poemas mais recentes, em que ela é capaz de pegar “palavras tão vazias e sem sentido” que “estimulam alguma emoção rememorada” que nos prende à ocasião ou aos sujeitos envolvidos”, avalia o professor.

Autor de 11 romances e ganhador do Prêmio José Saramago e do Oceanos, o português José Luis Peixoto tem especial interesse por literatura inglesa e americana e conhecia a obra de Louise Glück, embora quase não haja traduções para o português. Para ele, uma das vantagens de a poeta ter ganho o Nobel é que, agora, as traduções vão pipocar nas editoras de língua portuguesa. “O trabalho de Louise Gluck traz-nos uma poesia muito clara e, ao mesmo tempo, bastante elegante e sóbria. Trata-se de uma obra que coloca o humano no centro das suas preocupações, tanto numa perspectiva mais íntima e pessoal, como enquanto reflexão ampla”, explica Peixoto.

A poeta Bruna Beber, autora de Rua da padaria e Ladainha, conheceu os versos de Louise Glück folheando a revista The New Yorker na casa de um amigo. Fisgada pelo estilo da americana, Bruna partiu para a pesquisa, leu livros e entrevistas e, anos mais tarde, já em 2020, recebeu do amigo novos poemas de Glück. “Imediatamente depois de ler sentei para traduzi-los. Traduzi para mim mesma, tenho costume de fazer esse exercício com poemas que gosto à primeira vista, um exercício para poder curtir aquele poema por mais tempo, de aproveitar aquele encontro ao máximo. Em todo caso, esqueci esses poemas nos meus arquivos e, hoje, acordei com a notícia do Nobel”, conta Bruna, que traduziu Autumn e The empty glass (Leia mais).

André Caramuru Aubert, colunista do jornal Rascunho, também traduziu alguns poemas de Glück, cujo estilo ele classifica como límpido, direto e quase seco. “Ao mesmo tempo, seus poemas são de um lirismo arrebatador”, aponta. “São poemas que contam histórias, e essas histórias são quase sempre melancólicas. É como se não houvesse choro solto, sem tampouco haver sorrisos. No máximo um olhar triste, no máximo um meio riso. Poucos poetas conseguem obter um tal equilíbrio. Um Nobel mais do que justo.”

A também poeta Marina Mara ficou eufórica ao saber que o Nobel foi conquistado por uma mulher. Somente 16 mulheres ganharam o prêmio desde sua criação, em 1901, em meio a dezenas de homens. "Essa é, ao mesmo tempo, uma conquista pessoal de Louise Glück e uma conquista de todas as mulheres, principalmente as poetas e escritoras. Acredito que, após essa importante condecoração, as editoras terão interesse em traduzir e publicar os livro de Louise Glück aqui no Brasil. Parabéns à Poeta, grande conquista!", diz Marina.

Em 2009, o poeta e tradutor português Rui Pires Cabral foi o responsável por traduzir alguns dos trabalhos da norte-americana para uma coletânea, um trabalho que o pesquisador Charles Porfírio, mestre em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), classifica como resultante de uma proximidade entre elementos poéticos. “Os dois são de uma vertente da poesia que não vem para redimir o mundo, mas para continuar dando sentido à vida”, pontua Porfirio. Dentro da perspectiva de trazer o universo cotidiano, familiar, o professor comenta que Glück cria significados que extrapolam a escrita egocêntrica e mantém o lado humano, de estender a mão para o outro. Porfirio também destaca a construção de sentido afetiva da poesia, característica da vencedora do Nobel, que torna o prêmio ainda mais relevante no contexto contemporâneo.

Louise Glück é a 16ª mulher a vencer o Prêmio Nobel de Literatura e a quarta laureada este ano pela Academia, que premiou Andrea Ghez, Emmanuelle Charpentier e Jennifer A. Doudna em prêmios científicos. Para o português José Luis Peixoto, a escolha da norte-americana poderá ter um impacto muito além da literatura. “Essa é uma mensagem muito direta nesta luta pela igualdade que tem vindo a ser travada em múltiplos palcos”, diz. “Ao mesmo tempo, parece-me muito justo que seja reconhecida a poesia, um gênero literário que, infelizmente, tem sido colocado à parte por um mercado com cada vez menos critério. Devemos muito à poesia. Hoje, temos a alegria de celebrá-la com Louise Gluck.”

Depois dos escândalos de assédio sexual em 2017, o que levou ao cancelamento do prêmio em 2018, a Academia Sueca havia prometido escolhas menos eurocêntricas e com um olhar para um universo literário que extrapolasse aquele dos homens brancos europeus. Em 2019, no entanto, um homem branco europeu voltou a ser laureado em uma escolha polêmica e criticada, já que o austríaco Peter Handke era conhecido como o negacionista das barbaridades sérvias cometidas durante a guerra da Iugoslávia. Naquele ano, a Academia também laureou a polonesa Olga Tokarczuk.

Anna More, norte-americana professora do departamento de Literatura da UnB cresceu com a escrita de Glück e teve muito contato com os textos da escritora durante a graduação em Harvard, em Boston, nos Estados Unidos. Para Anna, a notícia do Nobel resgatou uma leitura que havia se perdido no tempo. “Ela é uma poeta com estilo muito uniforme, profundo e constante. Sua poesia tem força. É coloquial, mas ela trabalha com métrica e você sente uma eficiência na linguagem, é pensada e selecionada para um impacto. A linguagem eleva a temática cotidiana a um nível universal emocional”.

Reconhecer Louise Glück significa também reconhecer a delicadeza, a sensibilidade e o poder da poesia em um universo de incertezas. “Acredito que talvez, neste contexto da pandemia a seleção da poesia tenha um impacto, porque a poesia é muito focada, ela vai no grão, vai no centro, vai torcer o significado das palavras, dos sentimentos e detalhes da vida. Talvez a academia tenha sentido que fosse uma escolha apropriada para o momento”, analisa. Contudo, a professora pontua o desejo de, no futuro, ver premiado autores, poetas, dramaturgos que não sejam conhecidos, mas que também não integrem os centros americanos e europeus.

 

 

 

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O Copo Vazio

Louise Glück (Tradução de Bruna Beber)

Pedi muito; recebi o bastante.
Pedi muito; recebi pouco, recebi
pouco mais do que nada.

No ínterim? Guarda-chuvas abertos dentro de casa.
Um par de sapatos vagueando pela mesa da cozinha.

Essa não, é — coisa do temperamento. Andava
indiferente, dispersa. Eu era
egoísta, austera ao limite da tirania.

Mas sempre fui assim, desde a infância.
Pequenina, cabelo escuro, temida pelas outras crianças.
Nada mudou. Dentro do copo, a maré
insondável da sorte virou
baixou do dia para a noite.

Foi o mar? Reagindo, talvez,
às forças celestiais? Para ficar a salvo,
rezei. Tentei ser uma pessoa melhor.
Logo me dei conta de o que antes era terror
e desabrochara-se em narcisismo moral
enfim transformava-se
em crescimento real. Quem sabe
era o que insinuavam meus amigos, segurando minha mão,
dizendo que reconheciam
a violência, tanta cagada que encarei,
insinuavam (como cheguei a pensar) que eu estava louca
de dar tanto por tão pouco.
Ao passo que diziam que eu era boa (apertando minhas mãos com força) –
Uma boa amiga, pessoa boa, não uma cria do páthos.

Nada patética! Só não admitia contestação,
como uma rainha ou uma santa.

Cria-se então uma conjectura interessante.
E me ocorre que o mais importante é acreditar
no esforço, acreditar que o bem virá
pelo simples fato de tentar,
um bem imaculado do aviltante impulso inerente
de convencer ou seduzir –

Sem isso, o que nos resta?
A turbilhonar no breu do universo,
sozinhos, temerosos, incapazes de influir no destino –

O que ainda nos resta?
Artimanhas com escadas e sapatos,
truques salubres, tentativas rotineiras de construir
caráter sobre motivações vagas.
De que modo aplacar as forças monumentais?

Estou convencida de que foi essa pergunta
que destruiu Agamenon, ali naquela praia,
as naus gregas a postos, o mar
enevoado além do porto sereno, o futuro
irremediável, arriscado: foi tolo, acreditava
ter tudo sob controle. Melhor tivesse dito
Não tenho nada, estou ao seu dispor.