Maitreyi Ramakrishnan admite ter precisado de bastante desenvoltura para conseguir lidar com a reviravolta no roteiro de sua vida.
A jovem canadense de 18 anos alcançou a fama ao conquistar o papel principal de Eu Nunca…, série de comédia da Netflix, depois de deixar para trás 15 mil concorrentes.
Da noite para o dia, ela passou a ser exaltada como o destaque desta história de amadurecimento que retrata uma adolescente indo-americana de primeira geração. A série se tornou um grande sucesso de público, sendo um dos programas originais mais assistidos na plataforma de streaming em 2020.
Mas se de um lado Ramakrishnan afirma à BBC que transita pela grande maioria dos comentários nas redes sociais sociais, de outro ela revela que foi pega totalmente de surpresa por um aspecto da súbita fama.
"Eu me preparei para a série em si e para coisas como esta entrevista. A única coisa para a qual não pude me preparar foi para o ódio", diz.
O ódio a que Ramakrishnan se refere são os ataques violentos nas redes sociais.
"Eu sabia que isso aconteceria porque é o mundo em que vivemos."
"Você sabe o que é um comentário nojento ou uma ameaça de morte… Mas é diferente quando isso acontece de verdade."
A atriz canadense afirma que ter recorrido a afastamento temporários de suas contas de rede social quando se sentiu oprimida por experiências negativas.
"Eu me garanto de que todas as minhas contas de rede social sejam operadas por mim, pois quero ser minha voz autêntica", explica. "Mas às vezes tenho feito pausas e me distanciado."
'Maioria das mulheres atacadas online'
Infelizmente Ramakrishnan não está sozinha, e então ela se tornou uma embaixadora da Plan International, uma ONG de direitos da criança focada na igualdade de gênero para ajudar a aumentar a conscientização sobre esta batalha contínua.
Mais de 14 mil meninas e jovens mulheres, de 15 a 22 anos, de 20 países diferentes responderam a uma pesquisa recente sobre vivenciar experiências semelhantes na internet.
Os resultados, divulgados para coincidir com o Dia Internacional das Meninas (11 de outubro), apontam um quadro preocupante.
Mais da metade das entrevistadas (58%) disse ter sofrido ataques ou abusos nas plataformas de rede social.
E quase 9 em cada 10 afirmaram ter sofrido vários tipos de assédio, desde o uso de linguagem abusiva e ofensiva até comentários racistas e ameaças de violência sexual.
"Isso não está certo", diz Ramakrishnan.
"A internet é uma ferramenta incrível de se ter quando se trata de encontrar respostas e aprender mais sobre o que está acontecendo no mundo, mas ataques são ataques e essa situação só aumenta a pressão que as meninas já enfrentam", acrescenta.
Esse tipo de abuso está afastando algumas mulheres das redes sociais
Os pesquisadores da Plan International descobriram que a angústia causada por esse ataques online fez com que pelo menos 1 em cada 5 mulheres parasse ou reduzisse significativamente seu tempo na plataforma de rede social onde acontecia mais abusos.
De acordo com a pesquisa, isso ocorreu principalmente no Facebook e no Instagram.
A CEO da Plan International, Anne-Birgitte Albrectsen, afirmou à BBC que tal afastamento em massa das redes sociais foi bastante prejudicial, especialmente durante a pandemia de covid-19, quando as jovens dependiam tanto de suas vidas digitais.
"Tirar as meninas dos espaços online é extremamente 'desempoderador', em um mundo cada vez mais digital, e prejudica a capacidade delas de serem vistas, ouvidas e de se tornarem líderes", diz Albrectsen.
"Esses ataques podem não ser físicos, mas geralmente são ameaçadores, implacáveis e limitam a liberdade de expressão das meninas."
Ativista atacada com xenofobia e ameaças de violência
Tudo isso é algo muito familiar para Nadiuska, ativista feminista de 19 anos, que participou da pesquisa da Plan International.
A nicaraguense diz que teve de lidar com "uma boa quantidade de ataques em seu país", mas foram os incidentes no exterior que a chocaram seriamente.
Enquanto estava na Espanha no ano passado, para participar de uma marcha contra as mudanças climáticas, ela disse que recebeu ameaças em suas contas de rede social.
"Eu recebi uma mensagem xenófoba de um perfil me dizendo que eles tinham modos de me deportar e de me agredir", relembra. "Eu fico com medo. Não me senti segura online."
Nadiuska diz que episódios frequentes de ataques violentos afetaram sua saúde mental e teve que fazer terapia e tomar medicamentos para lidar com as emoções desencadeadas pelo abuso.
A pesquisa da Plan International descobriu que as mulheres engajadas em causas sociais são particularmente visadas por agressores, que também atingem desproporcionalmente pessoas de minorias raciais ou pessoas que se identificam como LGBTQ+.
"Como movimentos como #MeToo e Black Lives Matter mostraram, a mídia social se tornou um espaço cada vez mais importante para o ativismo", diz Albrectsen, da Plan International .
"Os números são mais ou menos iguais em todas as regiões, e isso é bastante preocupante."
A Europa foi a região onde uma maior porcentagem de meninas relatou ataques online (63%), enquanto a América do Norte foi a menor, com 52%. A América Latina tem uma taxa de 60%.
"As redes sociais estão permitindo mais abuso contra essas jovens mulheres do que elas encontrariam na sociedade em geral", afirma Albrectsen.
Defensores da igualdade de gênero temem que esses ataques possam ser particularmente prejudiciais às tentativas de aumentar o número de mulheres online.
'Quantidade chocante de fotos íntimas não solicitadas'
As recém-chegadas ao ambiente online podem ser desestimuladas rapidamente, como lembra Cathy, uma ugandense de 20 anos.
A jovem começou a usar a internet há apenas três anos, pois para ela estar online e usar as redes sociais era uma distração muito necessária de uma rotina de trabalho duro como alfaiate, função que exerce para ajudar a sustentar sua mãe, sua irmã e seu irmão.
Mas ela disse no levantamento da ONG que logo depois de entrar no Facebook foi bombardeada por diversas fotos de nudez de um homem que conheceu online.
"Um cara veio à minha caixa de entrada e falou 'oi'. Eu respondi 'oi'. Ele disse 'como você está?', e eu respondi. Mas no dia seguinte, quando acordei, encontrei várias imagens bizarras."
"Ele tinha me mandado várias fotos pelado. Foi chocante e triste", disse.
Histórias como a de Cathy estão longe de serem raras. Quase 40% das garotas e jovens mulheres entrevistadas na pesquisa registraram ter sofrido assédio sexual.
Há uma pressão crescente para que as plataformas de redes sociais combatam o assédio.
As empresas dizem ter adotado nos últimos anos uma série de medidas voltadas para combater o abuso online e têm se comprometido publicamente em acabar com ele.
O Facebook, que também é dono do Instagram e do WhatsApp, afirma usar inteligência artificial para buscar conteúdo de bullying e diz monitorar constantemente denúncias de abuso feitos por usuários. E que sempre remove ameaças de estupro, por exemplo.
"É crucial manter as mulheres e garotas seguras em nossos aplicativos. Nós investimos em tecnologia para banir abusos de nossas plataformas e trabalhamos com mais de 200 organizações de segurança ao redor do mundo para proteger mulheres de ataques online, comentários ofensivos e atenção indesejada", afirma em nota Cindy Southworth, chefe de segurança da mulher do Facebook.
"Pesquisas como essa (da Plan International) nos ajudam a entender mais profundamente como as mulheres e as meninas estão sendo afetadas por essas questões. Como parte da campanha da Plan International, estamos trabalhando com eles para abrir sessões de escuta com jovens mulheres para que elas compartilhem suas experiências e para quem nós possamos apoiá-las mais no Facebook, no Instagram e no WhatsApp", acrescenta Southworth.
Procurado pela reportagem, o Twitter afirma que também usa ferramentas tecnológicas para identificar conteúdo abusivo, e que a maioria dos tuítes abusivos agora são identificados usando essas ferramentas, algo que faz com que não se dependa apenas de denúncias de usuários. A empresa também disse que lançou recursos para melhorar o controle dos usuários sobre suas conversas.
Até o momento da publicação desta reportagem, o Snapchat e o TikTok não haviam respondido aos pedido de comentários feitos pela BBC.
Parte dos ativistas quer ver mais ações concretas de empresas e também de governos em termos de mudanças na legislação.
'É preciso mais ação'
"No momento, o ônus de lutar contra o assédio online é das vítimas", diz Chenai Chair, pesquisadora sobre gênero e direitos digitais na Web Foundation, organização criada pelo inventor da World Wide Web, Sir Tim Berners-Lee.
A atriz Maitreyi Ramakrishnan agora é também outra voz que amplia a pressão.
Ela é uma das milhares de pessoas que assinaram uma carta aberta da Plan International pedindo às companhias de mídia social que "criem mecanismos de denúncia de violência mais eficazes".
"As pessoas precisam entender que o assédio dói, mesmo quando vem de uma pessoa aleatória. Não devemos descartar o que as vítimas passam", diz ela.
"Eu denuncio comentários de ódio, mas acho que as plataformas não deveriam permitir isso antes de mais nada."
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