Vozes fundamentais

Paula Lima superou os estigmas do início da carreira de que o mercado só podia ter uma cantora preta em destaque: "Poderia ter me desmotivado, mas a minha paixão era maior". Mesmo com adversidades, Renato Matos fez história na capital e na música: "No Brasil, quando a gente é negro tudo é difícil"

Adriana Izel
postado em 16/11/2020 21:51
 (crédito: Rogerio Mesquita/Divulgação)
(crédito: Rogerio Mesquita/Divulgação)

 

A paulista Paula Lima, que deu voz a sucessos como Meu guarda-chuva e É isso aí, percebeu logo no início da vida adulta que para seguir o sonho de ser cantora teria que enfrentar as barreiras impostas a uma menina que nasceu e cresceu em uma família de classe média preta. Por isso, a paixão cultivada desde a infância teve que dividir espaço com os estudos. Paula cursou um ano de publicidade, depois se formou em direito e chegou a trabalhar, enquanto tocava nos bares com a banda Funk Como Le Gusta, no Tribunal de Justiça de São Paulo. Ao Correio, a artista relembra o início da carreira, destaca que canta música negra e fala sobre a importância dos artistas se posicionarem sobre temas sociais: “A gente tem uma responsabilidade social e civil de se engajar em questões humanitárias”.

Você, como muitos artistas, precisou se reinventar na pandemia. Como foi esse processo?
Acho que, como todo mundo, eu achei que quarentena fosse ser uma questão rápida. Não tive um planejamento dessa reinvenção, as coisas foram acontecendo. Voltei a estudar piano, a gravar meu programa de rádio, Chocolate quente (na Rádio Eldorado), de casa mesmo. Me tornei diretora da União Brasileira dos Compositores antes da pandemia e passamos a fazer ações para tentar ajudar a salvar o setor e colaborar financeiramente. Foram criadas lives em prol dessa nova realidade, em que, eu, como entrevistadora, converso semanalmente com artistas. Vamos fazer até dezembro, depois paramos e retomaremos em janeiro.

Além do engajamento com a cultura, você passou a falar mais das questões raciais neste período nas suas redes sociais, né?
Com a pandemia, a gente saiu de uma bolha, do automático. Nesse sentido, a gente começou a notar que o mundo é mais duro e cruel do que a gente sabia. Diante de tudo isso, a questão racial sempre foi um tema que interessou muito, mas eu não colocava tanto isso de uma forma externa. Se eu fosse perguntada, eu não falaria, não buscava cavar isso. Eu tinha uma pauta musical. Não que eu não ligasse para as pautas humanas e urgentes, como pessoa negra e mulher negra, eu já sou empática. Mas a tragédia do George Floyd mexeu comigo, todo esse caos políticos e social, não tem como fazer cara de paisagem. Você tem que colaborar de alguma forma, ser um agente transformador, tem que ter voz. Preciso falar porque sou uma pessoa pública. Tenho acesso de uma maneira diferente. Tenho que usar para o bem. A gente tem uma responsabilidade social e civil de se engajar em questões humanitárias. Realmente sempre esteve comigo, mas se tornou em algo latente.

Você acha que essa visão vai influenciar na sua música, no disco que você pretende lançar no próximo ano?
Com certeza. Pretendo, mas a arte é imprevisível. Nem sempre aquilo que você racionaliza acontece no lado da emoção. Até porque eu não sou uma supercompositora. O disco terá músicas inéditas do Emicida e do Criolo e deve ter uma ou duas minhas com mais alguém. Tem uma parte de festa, mas também social e de coração. Espero que isso possa realmente estar no meu novo som, no meu novo trabalho. Porque a música tem um sentido de agente transformador. O mais legal é quando a gente consegue somar com alguém, seja na emoção, seja na reflexão.

Sabemos que os artistas podem ser agentes transformadores também pelos exemplos, pelas próprias histórias.
Como foi a sua trajetória?
Sempre amei cantar, mais do que qualquer coisa que envolva meu trabalho. Tenho uma coisa com a voz. Minha mãe dizia que eu cantava no berço. Aos 7 anos, comecei a estudar piano e fiz até os 17. A música era uma coisa real para mim. Mas depois fui entendendo que como mulher preta e de uma classe média preta, que é diferente da branca, as coisas seriam diferentes. Sempre estudei em escola particular, pude estudar um instrumento. Digo que tinha uma vantagem social, mas não sou de uma família privilegiada, porque o privilégio é uma característica de pessoas brancas. Eu entendi que não teria herança, que precisaria vencer pelo meu próprio esforço. Por mais que eu gostasse da música, prestei um concurso público e me tornei técnica judiciária. Eu queria ter o diploma como segurança. Eu fazia shows em bares lotados e no outro dia estava no tribunal, até o dia que tive certeza que não precisava mais de um plano B.

Você enfrentou barreiras na música?
Qualquer pessoa negra enfrentou barreiras, ela tenha percebido ou não. Mas me lembro de um caso específico. Eu tinha o sonho de gravar um disco. Já estava há seis anos no mercado e ia entrar numa gravadora. Soube por um produtor que não me contrataram porque já tinha uma cantora negra no mercado e eles não sabiam se aceitariam duas pessoas negras. Isso foi algo ignorante, absurdo. Poderia ter me desmotivado, mas a minha paixão era maior. Como podem destruir o futuro de alguém por racismo? Essas questões todas sempre foram muito claras para mim. Mas hoje tenho uma consciência maior. Porque às vezes a gente passa por algo, mas só percebe como aquilo te afetou, anos depois. Me sinto fortalecida hoje. Até porque o mercado musical tem várias pessoas negras interessantes fazendo trabalhos legais. Não estou mais sozinha.

Você transita entre vários ritmos, do soul ao samba. Que tipo de música acha que faz?
Entendo que faço música negra. Eu parto de uma árvore da black music que tem várias ramificações e gosto de muitas delas. Gosto do soul, do funk, do samba, do samba rock, da bossa nova, do jazz. Gosto de suingue, groove, tudo isso é latente no meu som. Mas gosto de dizer que faço black music.

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Artista múltiplo

 (crédito:  Ed Alves/CB/D.A Press)
crédito: Ed Alves/CB/D.A Press

Com mais de 40 anos na capital, o cantor e compositor baiano Renato Matos desembarcou em Brasília em 1974, aos 21 anos, para uma exposição de pintura e, hoje, se tornou um dos principais nomes da cena artística brasiliense. “A exposição foi sucesso, terminei ficando um tempo aqui. Depois, fiz teatro e por aí vai”, lembra o músico.
Tempos depois, Neio Lúcio Ribeiro abriu a galeria Cabeças, onde segundo Matos era um local parado, mas foi só pedir ao amigo para trazer música para o lugar que tudo mudou. “Ali, começou o Concerto Cabeça, a galeria passou a ter filas e marcou também o começo do tropicalismo em Brasília”, afirma. Ele foi o primeiro artista a se apresentar no local, que depois recebeu Cássia Eller, Oswaldo Montenegro, Zélia Duncan, Renato Vasconcellos, Jaime Ernest Dias, Beth Ernest Dias, Mel da Terra e outros nomes.
“A gente tinha essa abertura, uma coisa meio Bauhaus e todo mundo se expressava com música, pintura e outras artes. As pessoas desciam do bloco para ver, mas com a internet essas coisas foram mudando”, declara o baiano de coração brasiliense, que afirma que a cidade o acolheu e curte o trabalho dele.
O artista múltiplo, considerado o pai do reggae da capital, é responsável por sucessos marcantes como Um telefone é muito pouco, canção que marca o imaginário de muitas pessoas. O regueiro ainda homenageou a cidade com Menina do parque e Chorinho do Beirute. “Tenho um ecletismo, fico fazendo de tudo”, comenta. As veias artísticas passaram de geração para geração. O cantor é pai de José Maia designer e artista plástico, da rapper Flora Matos, e do cantor e ator Cae Maia.
Ao ver uma carreira tão estruturada como a de Renato Matos, o público nem imagina as dificuldades. “No Brasil, quando a gente é negro tudo é difícil. Se for indígena então é pior. Ser gay então, nem pensar”, lamenta o artista múltiplo. “Não me considero negro nem mulato. Eu sou é preto, minha pele é feita das misturas”, afirma o baiano Renato Matos. “A história tem dessas psicologias e as pessoas têm que valorizar mais as outras e, principalmente, respeitá-las”, pontua.


Três perguntas / Renato Matos

Você está na estrada há anos. O que você aprendeu nesse tempo?
Não aprendi nada. Agora que estou aprendendo, porque para aprender, a gente tem que passar pela estrada antes e ainda estou na estrada, continuo aprendendo, e refletindo com a idade.

Qual foi o momento mais glorioso da sua carreira?
Há alguns momentos. Um show com o Gilberto Gil no Festival Latino-Americano. Outro foi um show que fiz com a Clementina de Jesus no Teatro Nacional, foi a coisa mais linda do mundo, tenho aqui gravado. E cantar na Universidade de Brasília (UnB) com o Zeca Baleiro, no forró do Zeca.

Qual foi o momento mais difícil?
Não tive dificuldade, não tem frustração não. Prefiro lembrar das horas boas. Mas uma vez briguei com o Jorge Ben e tenho um certo arrependimento. No dia que eu encontrar com ele, vou dar um beijo e um abraço. Eu o amo e me arrependo, talvez ele nem lembre, estava todo mundo doido mesmo.

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