“Estou trabalhando como nunca”. É assim que o cantor e compositor Tom Zé, de 84 anos, define como tem sido a pandemia dele. O tropicalista se dedica a um projeto teatral com Felipe Hirsch inspirado na música Língua brasileira, do álbum Imprensa cantada (2003), em que canta em um dos trechos “Babel das línguas em pleno cio/ Seduz a África, cede ao gentio/ Substantivos, verbos, alfaias de ouro/ Os seus olhares conquistam do mouro”. A obra, ainda a ser lançada, é um resultado da admiração pela forma como o baiano de Irará (município da área de expansão metropolitana de Feira de Santana na Bahia) sempre destacou a exuberância do idioma no repertório.
A montagem fala sobre a epopeia dos povos que formaram a língua falada no Brasil. O projeto conta com o escritor e tradutor Caetano Galindo. “Felipe Hirsch, que tem o hábito de fazer musicais, ia fazer um com o disco Estudando a Bossa Nova. Por acaso ouviu Imprensa cantada e a música Língua brasileira e resolveu mudar completamente o musical”, lembra. Além de inspirar o espetáculo, Tom Zé tem composto faixas exclusivas para a peça que foi adiada e deve estrear em 2021 no Sesc de São Paulo. “Estou fazendo outras músicas, com palavras dessas línguas que criaram o mundo”, conta.
Ele se diz encantando com a pesquisa. “O Caetano Galino sabe de coisa que até o cão duvida. Imagine que, através de uma palavra, ele acaba descobrindo uma língua morta, que nem tem documento. Ele sabe coisas incríveis dessa língua portuguesa e de toda a história fantástica que ela tem”, completa.
Brasilidade
A paixão de Tom Zé pelo Brasil não para na língua falada. Ele também é um fã de música brasileira e, diferentemente de alguns dos contemporâneos, não têm preconceito com a nova geração e outros gêneros musicais distintos ao dele. Pelo contrário, ele gosta mesmo de escutar as canções que agradam à massa. “Desde que o Tropicalismo acabou que presto atenção aos novos. Primeiro nos meninos do rock. Eu também ouvia essas músicas. Depois acompanhei todas as gerações”, comenta.
Atualmente, o preferido dele é o rapper Emicida. “Sou um fã ardente do Emicida. Peço para a Tânia (esposa dele) separar os discos dele. Ele é muito meu amigo também por isso”, revela. Há um tempo atrás, Tom Zé resolveu escutar alguns artistas do forró. “Tem música ali que eu morro de inveja. Eu trocaria minha obra toda por uma ou outra música ali”, diz com convicção. Ele lembra que quando jovem em Irará ouvindo rádio ele conseguia perceber a riqueza do Brasil. “Temos um tesouro em nossas mãos. Quando eu saio do Brasil, eu tomo até um susto. Parece que sou um grande herói, pela festa e pela alegria que o povo faz. Mas temos repertório, gerações e gerações de compositores respeitáveis. Tem muita coisa importante na música brasileira”, acrescenta.
Esse reconhecimento internacional é o que fez que Tom Zé ganhasse uma biografia publicada primeiro em italiano L’ultimo tropicalist (O último tropicalista, em português), escrita por Pietro Scaramuzzo. A expectativa é de que a obra chegue ao Brasil traduzida no próximo ano.
Resgate musical
Enquanto isso, Tom Zé resgata o repertório dos anos 1960 e 1970, com o lançamento do disco Raridades pela gravadora Warner. O álbum traz 14 faixas praticamente inéditas, que haviam sido gravadas apenas em compactos simples ou projetos especiais. A curadoria foi feita pelo jornalista e pesquisador Renato Vieira. “Confesso que nem sei como foi isso. Sei que as gravadoras têm um acervo muito grande e esse rapaz, o Renato Vieira, fez esse compilado”, admite.
O pesquisador buscou fazer um registro cronológico desde a vitória do artista no Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1968, até o lançamento de Estudando o samba, em 1976. “O Vieira pegou umas músicas que tinham a ver com uma fase. Dói é uma música que acabou entrando no repertório da Betina, uma cantora que o pessoal da Tropicália conheceu e quis fazer um disco dela. O Senhor cidadão foi uma música que fiz para falar sobre a posição de segregação. Essa música (de 1972) acabou fazendo sucesso há pouco tempo porque entrou numa novela (Velho Chico, de 2016)”, recorda.
Ele também lembra com carinho de Augusta, Angélica e Consolação, outra faixa resgatada em Raridades. Tom Zé admite que a escreveu plagiando Adoniran Barbosa. “Essa música deu muito certo. Eu tive oportunidade de mostrar para o Adoniran Barbosa. Quando ele ouviu, ficou com uma cara de triste. Acho que pensou: “esses moleques estão fazendo por mim”. Foi uma música que teve uma grande repercussão”, comenta. A faixa foi lançada originalmente em 1973.
Talvez, por coincidência, as faixas de Raridades representam um período em que Tom Zé trabalhou com arranjos do argentino Héctor Lagna Fietta, quem ele define como “um arranjador excepcional”: “Eu o descobri assim por acaso. Estava em Salvador, depois vim pra São Paulo para cantar no Festival da Record e fiquei admirado com um arranjo feito por ele. Ele fez vários arranjos de músicas que estão nesse disco (Raridades). Tem Feitiço, Você gosta?, Jeitinho dela, Bola pra frente, Silêncio de nós dois, Quem não pode se Tchaikowsky, A dama de vermelho, Dói e O anfitrião. Ele fazia arranjos tão bem, que a orquestra soava de uma maneira tão confortável”.
O disco ainda traz uma versão raríssima de Jeitinho dela com participação dos Novos Baianos, banda a qual Tom Zé teve papel fundamental no surgimento — foi ele quem apresentou Moraes Moreira a Luiz Galvão — e Irene, música de Caetano Veloso completamente repaginada. “Geralmente quando faço o arranjo tomo certas ousadias. Mexo na música desde que esteja fiel ao que o autor queria dizer. Fiz isso com Irene”, lembra.
Raridades
De Tom Zé. Warner, 14 faixas. Disponível nas plataformas digitais.
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