Na cadeia de sucessos, como ator, cantor e compositor, Flávio Bauraqui faz questão de priorizar um elo: o do público. “A plateia é linda e sempre justifica tudo. A conexão é o grande sentido de tudo que a gente faz”, explica ele, que atualmente se diz beneficiado pela generosidade do audiovisual. Passados 18 anos, desde a estreia com Madame Satã, Bauraqui pode ser visto na série Arcanjo renegado, está em alguns cinemas do país, à frente de dois longas baseados na vida real: o terror Macabro e o drama Abraço, em que professores sergipanos se mobilizam contra retrocessos nos direitos trabalhistas. No circuito de festivais, Bauraqui se destaca em Pureza, produção brasiliense comandada por Renato Barbieri.
Mudar, de repente, o rumo dos humores das pessoas, na pandemia, tem feito bem ao ator que diz receber muitas mensagens e carinhos, quando canta num vídeo, quando posta uma dança ou ainda se desdobra entre stories e lives. Na ponta da língua moram os artistas que serviram como inspiração para o artista, que elenca os negros Grande Otelo, Ruth de Souza, Léa Garcia, Cartola, Ismael Silva e Lupicínio Rodrigues. Quando o assunto é racismo, o ator, nascido no Rio Grande do Sul, percebe descaramento e força no racismo. “O jeito de ser racista é diferenciado, e o vejo em todos lugares. É bem triste, perceber, constar isso. M as eu acredito também nos coletivos, nos movimentos que estão aí. As coisas e questões, da nossa parte, de nós pretos, em evolução. Há pastorais mobilizadas, e isso muito me alegra”, observa, em entrevista, ao Correio.
O fato de ser artista no Brasil, e experimentar o 2020, te deixa vulnerável ou revigora objetivos?
Eu acredito que as duas coisas. Estamos todos vulneráveis, até os que acham que não estão, estão, sim. E revigora objetivos. Porque surgiu uma nova forma de viver. Um jeito novo de olhar para o mundo, tentando entender que mundo é esse em que estamos inseridos.
Como contornou ou enfrentou casos de racismo na vida?
Enfrentei cada caso de uma forma diferenciada, por serem circunstâncias diferentes. Muito embora o racismo sendo o mesmo. Mas quando falo do específico, é pelo fato de terem sido preconceitos em ambientes e situações diversas. Minha reação foi de acordo com cada circunstância dessa. Acho que vale a pena bater de frente com sistemas. Na verdade pesa é e a resistência, por que estamos em um país democrático, Porque somos todos muito importantes e somos seres iguais, mas a realidade não é essa: a realidade é desigual e hostil. Então acho que realmente é importante resistir.
Há desserviços patentes no Brasil da atualidade?
Realmente vejo que desserviços são muitos. Não acreditar na ciência é um. Há o desserviço das fake news, na desinformação há desserviço. Acho que o momento que estamos vivendo está protagonizado por desserviços ao nosso país. O mundo está assim. Mas acredito que existe uma ação e uma reação. Tudo o que está sendo feito está nos tornando mais fortes, num sentido. Os grupos estão se formando, estão se estabelecendo. Então, aquele que é atacado conta com uma reação a esse ataque. Acredito nisso.
O que legitima cotas raciais na sua opinião?
Na minha opinião, o básico: porque nós fomos jogados, nossos descendentes, jogados sem nenhum amparo. Servimos a um sistema e depois jogados fora. Então é uma questão de ressarcir, de tornar iguais. Esta frase que todos repetem: “somos todos iguais”. Então que sejamos, e acho que essa é uma reparação. Não vejo como esmola: não é esmola. É uma reparação, eu acho justo. Há quem discorde, mas vivemos em um mundo democrático. Pessoas podem discordar. Eu acredito que seja muito importante ter cota.
O que pode falar do longa Pureza, de Brasília, e que percorre festivais de cinema?
Pureza é um filme lindo que está ganhando muitos prêmios. Narciso é um personagem que interpreto e que simboliza aquela parte bem terrível do ser humano: você vê um tipo de capataz que é capitão-do-mato dos seus, dos seus iguais. Ao mesmo tempo, você vê que ele está cego pela própria vaidade e por essa coisa de querer torturar o outro, de achar engraçado. É algo que estamos vivendo hoje em dia, em outras escalas, com outras caras, outros figurinos e outras cores. Mas, no fim, estamos vivendo exatamente isso: ver este certo prazer de torturar o outro. O prazer da maldade, do culto a isso, achar isso estratégia interessante. E você vê mais do que isso, um personagem que representa um lugar onde, nesse país tão grande, o estado não consegue proteger o cidadão. Porque isso acontece livremente, digo, o trabalho escravo, e ainda hoje acontece, fora um outro tipo de escravidão que a gente vive hoje: a moderna.Há quem insista em querer deixar a escravidão ficar, mas vai ter que entender que o mundo mudou e as coisas mudaram. Nós (negros) estamos agindo de com isso de uma forma bem diferente e não estamos aqui de brincadeira.
O que leva ao decaimento de Narciso, em Pureza?
Enquanto o ator, houve uma interessante construção de personagem. O personagem se perde no próprio ego dele. Ao mesmo tempo, sempre tento colocar, mesmo que eu descorde completamente da postura do personagem, tento perceber que aquele ser nasceu, foi uma criança, foi alguém esperando, desejado por alguém. Foi indefesa depois parto para entender como foi o trajeto para chegar naquele ser humano. Qual foi a receita pra terminar nesse ser humano que é super questionável: no ser sem coração, sem nada. Foi complexo e sutil viver o Narciso.
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Sem isenções
Numa posição de desconforto com normas e rigidez difundidas no Brasil, o ator, professor e poeta Jonathan Andrade tem apostado na sua “desconstrução como cidadão”, tornada quase meta. Numa carreira que alia 20 anos de intimidade com os palcos, ele, que ainda é cenógrafo e dramaturgo, poderia se gabar da projeção por muitos rincões do país. Jonathan coleciona interferências em montagens de Autópsia, uma celebração do universo de Plínio Marcos; de Tsunami, que destaca a solidão a cercar uma personagem refugiada e de Caipora quer dormir, em torno da vida de uma professora sufocada por afazeres cotidianos.
Impossível conversar com Jonathan e, no mês da Consciência Negra, não chegar à mazela que discrimina negros dentro da sociedade. As dores do preconceito racial existiram e ecoaram, a ponto de ele não consigo elencar o caso mais danoso; mas há força grande em Jonathan, pelo engajamento que carrega. “Todos os casos de racismo tentaram, de alguma forma, me banir, me despotencializar, me escravizar. Como foi também feito com meus antepassados, e segue sendo feito com várias pessoas”, avalia. Abertamente, o ator diz que foram casos que deixaram marcas profundas em como se relaciona com o mundo e em como buscava se relacionar até consigo. E completa: “São marcas que ralei para aprender a acolher e a transformar em potência”.
Qual a repercussão do teu trabalho? Leva o nome de Brasília para além do circuito local?
Me sinto muito acolhido, prestigiado e reverenciado pelo meu trabalho dentro do DF e fora também. São 20 anos de carreira e muitos projetos, muitos parceiros de trabalho e um público imenso e diverso de várias regiões do país construindo comigo ápices. Foi um marco decisivo, para mim, nesses anos todos de trabalho, por exemplo, ter a oportunidade de criar um espetáculo a partir da vivência que eu e meu grupo de teatro, Grupo Sutil Ato, tivemos no aterro de lixo da Estrutural, o maior aterro de lixo da América Latina, até ser fechado recentemente. Essa experiência me desloca profissional e humanamente. Há outras éticas importantes a serem pensadas como sociedade e arte. O país precisa encarar as falências desse sistema que investe na desigualdade econômica e social.
Quando o preconceito é mais devastador?
Todo preconceito é devastador, porque desumaniza, e, quando a gente é desumanizado, passamos a ser alvo de qualquer violação. A gente é condenado a não poder existir como somos. Não somos normas; somos diversidade. Não há liberdade possível na cultura preconceituosa. Não há paz possível no mundo que cultua preconceitos. O preconceito não é projeto de uma sociedade ou humanidade saudável. O preconceito pertence à ignorância e às tiranias.
O que faz para transpôr atitudes racistas?
Entendendo que a minha felicidade e meu gozo diante da vida são projetos revolucionários. Que por meio da minha felicidade eu esboço minha liberdade, e devolvo também aos meus ancestrais um outro mundo possível. Entendendo também que as normatividades que estruturam a nossa sociedade não contemplam a diversidade que somos. Somos potências por sermos diferentes. Eu hoje brinco quem eu posso ser. Eu sou um esboço do que quero ser para mim. O preconceito não é uma conta minha. Minha moeda é a minha liberdade: ela atropela o preconceito que tenta me atingir.
Como o teatro te atraiu, e qual a relevância de se projetar como um negro instrumentalizado pelas artes?
A arte me atraiu como legado ancestral, desde sempre, desde antes de mim. Uma herança que divido com todos os que vieram antes de mim. Sou a primeiro da família a poder escolher a arte como ofício. A ter condições de investir e me dedicar profundamente a essa luta. Eu acho que a relevância é poder ocupar espaços antes negados e impossibilitados e comemorar, junto a toda uma história familiar, novos mundos. Novas possibilidades de existir, sobretudo a possibilidade de poder escolher. Poder escolher foi para mim uma grande porta para buscar minha liberdade no meio de todas essas condenações impostas pelas estruturas sociais.
Há soluções para o instituído estado de desordem nos valores sociais?
Nesse momento de país, eu só consigo dizer que seguimos tentando as soluções. Mais do que nunca seguimos tentando. O Brasil não se sabe além do pensamento colonial, e a cada dia vemos o retrocesso acontecer. A desumanidade rege a nação. Por outro lado, eu também festejo o tanto de vozes e representatividades que estão acordadas e lutando pelas soluções. Estamos lutando e seguiremos lutando! Há muitos valores sociais novos e necessários que estão aí construindo uma história melhor, em contraponto a esse projeto de desordem.