Numa posição de desconforto com normas e rigidez difundidas no Brasil, o ator, professor e poeta Jonathan Andrade tem apostado na sua “desconstrução como cidadão”, tornada quase meta. Numa carreira que alia 20 anos de intimidade com os palcos, ele, que ainda é cenógrafo e dramaturgo, poderia se gabar da projeção por muitos rincões do país. Jonathan coleciona interferências em montagens de Autópsia, uma celebração do universo de Plínio Marcos; de Tsunami, que destaca a solidão a cercar uma personagem refugiada e de Caipora quer dormir, em torno da vida de uma professora sufocada por afazeres cotidianos.
Impossível conversar com Jonathan e, no mês da Consciência Negra, não chegar à mazela que discrimina negros dentro da sociedade. As dores do preconceito racial existiram e ecoaram, a ponto de ele não consigo elencar o caso mais danoso; mas há força grande em Jonathan, pelo engajamento que carrega. “Todos os casos de racismo tentaram, de alguma forma, me banir, me despotencializar, me escravizar. Como foi também feito com meus antepassados, e segue sendo feito com várias pessoas”, avalia. Abertamente, o ator diz que foram casos que deixaram marcas profundas em como se relaciona com o mundo e em como buscava se relacionar até consigo. E completa: “São marcas que ralei para aprender a acolher e a transformar em potência”.
Qual a repercussão do teu trabalho? Leva o nome de Brasília para além do circuito local?
Me sinto muito acolhido, prestigiado e reverenciado pelo meu trabalho dentro do DF e fora também. São 20 anos de carreira e muitos projetos, muitos parceiros de trabalho e um público imenso e diverso de várias regiões do país construindo comigo ápices. Foi um marco decisivo, para mim, nesses anos todos de trabalho, por exemplo, ter a oportunidade de criar um espetáculo a partir da vivência que eu e meu grupo de teatro, Grupo Sutil Ato, tivemos no aterro de lixo da Estrutural, o maior aterro de lixo da América Latina, até ser fechado recentemente. Essa experiência me desloca profissional e humanamente. Há outras éticas importantes a serem pensadas como sociedade e arte. O país precisa encarar as falências desse sistema que investe na desigualdade econômica e social.
Quando o preconceito é mais devastador?
Todo preconceito é devastador, porque desumaniza, e, quando a gente é desumanizado, passamos a ser alvo de qualquer violação. A gente é condenado a não poder existir como somos. Não somos normas; somos diversidade. Não há liberdade possível na cultura preconceituosa. Não há paz possível no mundo que cultua preconceitos. O preconceito não é projeto de uma sociedade ou humanidade saudável. O preconceito pertence à ignorância e às tiranias.
O que faz para transpôr atitudes racistas?
Entendendo que a minha felicidade e meu gozo diante da vida são projetos revolucionários. Que por meio da minha felicidade eu esboço minha liberdade, e devolvo também aos meus ancestrais um outro mundo possível. Entendendo também que as normatividades que estruturam a nossa sociedade não contemplam a diversidade que somos. Somos potências por sermos diferentes. Eu hoje brinco quem eu posso ser. Eu sou um esboço do que quero ser para mim. O preconceito não é uma conta minha. Minha moeda é a minha liberdade: ela atropela o preconceito que tenta me atingir.
Como o teatro te atraiu, e qual a relevância de se projetar como um negro instrumentalizado pelas artes?
A arte me atraiu como legado ancestral, desde sempre, desde antes de mim. Uma herança que divido com todos os que vieram antes de mim. Sou a primeiro da família a poder escolher a arte como ofício. A ter condições de investir e me dedicar profundamente a essa luta. Eu acho que a relevância é poder ocupar espaços antes negados e impossibilitados e comemorar, junto a toda uma história familiar, novos mundos. Novas possibilidades de existir, sobretudo a possibilidade de poder escolher. Poder escolher foi para mim uma grande porta para buscar minha liberdade no meio de todas essas condenações impostas pelas estruturas sociais.
Há soluções para o instituído estado de desordem nos valores sociais?
Nesse momento de país, eu só consigo dizer que seguimos tentando as soluções. Mais do que nunca seguimos tentando. O Brasil não se sabe além do pensamento colonial, e a cada dia vemos o retrocesso acontecer. A desumanidade rege a nação. Por outro lado, eu também festejo o tanto de vozes e representatividades que estão acordadas e lutando pelas soluções. Estamos lutando e seguiremos lutando! Há muitos valores sociais novos e necessários que estão aí construindo uma história melhor, em contraponto a esse projeto de desordem.
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