Conexão diplomática

Silvio Queiroz 
postado em 20/11/2020 21:21

O voto negro também importa

Escrevendo no Dia da Consciência Negra, é quase obrigatório apontar o papel dos afroamericanos no desfecho da sucessão presidencial nos Estados Unidos. Em primeiro lugar, para que não fique sem ser dito, a afluência em massa dos eleitores negros foi decisiva para a definição do candidato que a oposição democrata levaria às urnas, na empreitada de brecar a reeleição de Donald Trump.
Não se trata de discussão acadêmica ou daquelas que empolgam apenas os iniciados (e viciados) na dinâmica da política partidária e institucional. Na análise da disputa deste ano pela Casa Branca, o elemento da mobilização do eleitorado negro é decisivo para entender os resultados. Basta lembrar que a campanha se fez, em plena pandemia, sob o impacto das manifestações desatadas pelo assassinato de George Floyd, cidadão negro, asfixiado por um policial branco durante uma abordagem que teve o início ditado basicamente por um “axioma” muito conhecido de nós, por aqui: o de que o negro, “parado é suspeito e correndo é ladrão”.
Joe Biden ganhou as primárias do Partido Democrata porque foi identificado pelo eleitorado afroamericano como um candidato capaz de levar adiante a causa do combate ao racismo. Teve a seu favor os oito anos em que ocupou a vice-presidência dos EUA, entre janeiro de 2009 e janeiro de 2017, ao lado de Barack Obama, o primeiro afrodescendente a governar o país. Foi novamente o voto negro que selou a vitória na disputa pela Casa Branca, e de maneira emblemática: depois de mais de três décadas, os democratas venceram a eleição presidencial na Geórgia, um estado tão simbólico para o passado da escravidão que é o cenário do épico E o vento levou...
Em plena campanha eleitoral, sucessivos incidentes de violência racista por parte da polícia mobilizaram o eleitorado negro nos EUA para negar o segundo mandato a um presidente que nem sequer se preocupou em tomar distância da violência racista. Fracassou a aposta de Trump em atrair para si os votos de uma parcela da população branca trabalhadora à base do lema ufanista America First. Na hora de abrir as urnas, os votos negros contaram — e fizeram história.

Virou o tempo

A abordagem de Washington para questões como a dia igualdade racial perfila-se ente os temas capazes de produzir atritos no contato entre o governo Bolsonaro e a nova administração norte-americana. A oposição estridente àquilo que se convencionou chamar de “políticamente correto” está entre os elementos centrais da afinidade entre o presidente brasileiro e o colega americano que deixará a Casa Branca em 20 de janeiro.

Mais do que reorientar a diplomacia brasileira para uma parceria estreita e incondicional com Washington, o presidente brasileiro apostou em certas agendas que o aproximavam do discurso ultradireitista de Donald Trump. A ponto de ignorar a “lei” não escrita, segundo a qual um chefe de Estado evita comprometer-se com projetos políticos próprios de outro governante quando este se submete ao julgamento popular.
Bolsonaro subiu a rampa, em janeiro de 2019, confiante na aliança que acreditava ter selado com o colega americano. O resultado das urnas na superpotência indica que o tempo virou. Planalto e Itamaraty terão de consultar novamente a bússola para encontrar o rumo em um cenário interamericano crescentemente instável.

Peru sem rumo

O vizinho Peru é apenas o exemplo mais recente do desacerto que se alastra pela vizinhança, sem que restem mecanismos regionais para administrar crises políticas. O país vem de destituir mais um ocupante provisório da Presidência, menos de uma semana depois de empossá-lo. Afora a corrupção endêmica, que alimenta a crise política no longo prazo, pesa como lastro para a instabilidade o envolvimento praticamente integral da elite política com propinas, negociatas e outras variantes da corrupção.
Do ponto de vista brasileiro, a falta de rumo político em um vizinho que compartilha parte significativa da fronteira amazônica deveria preocupar as áreas do governo envolvidas com a segurança pública. Fala-se muito da Colômbia e da Bolívia, até da Venezuela. Mas, ignora-se o papel da Amazônia peruana na geopolítica regional do narcotráfico.
A história recente da América do Sul mostra que os cartéis da cocaina — principalmente — nunca tardam a identificar terrenos propícios a qualquer uma das etapas de seu processo produtivo. No período em que a guerrilha comunista do Sendero Luminoso se expandiu pelo interior do Peru, a fronteira amazônica com Brasil e Colômbia foi um dos territórios nos quais o narcotráfico estabeleceu laboratórios de refino e rotas de contrabando. A crise política que se arrasta há mais de uma década tende a propiciar, novamente, condições favoráveis a uma modalidade criminosa que, pela natureza transnacional, passa a ser problema de todos os países fronteiriços.

Vizinhança no radar

Observando, a partir do norte-noroeste, as fronteiras oferecem ao Brasil desafios variados que testam um governo espremido entre os impactos da crise econômico-social-sanitária, os desdobramentos de uma eleição municipal fragmentária e a perspectiva de uma sucessão presidencial imprevisível. É nessa conjuntura movediça que o governo Bolsonaro corre o risco de ver-se obrigado a responder a crises de múltiplas facetas, cada qual com dinâmica própria.
Dezembro será o mês de eleições legislativas na Venezuela, onde o Planalto e o Itamaraty desconhecem a legitimidade do presidente Nicolás Maduro, mas se veem atados à aventura malsucedida do presidente autoproclamado Juan Guaidó. Seguindo em direção ao sul, a Colômbia segue sendo o celeiro regional da cultura ilícita de coca para refino de cocaína. O Peru motivou a nota acima, e a Bolívia dá os primeiros passos na normalização política, após a eleição que recolocou no governo o partido socialista do ex-presidente Evo Morales.
Já de olho em 2022, Jair Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo têm um cardápio variado e condimentado na frente externa mais imediata.

 

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