LITERATURA

Em autobiografia, Nelson Motta revela memórias dele e do país com bom humor

Autor lança obra em que conta causos que viveu como jornalista, escritor, letrista, roteirista, produtor musical e apresentador

Irlam Rocha Lima
postado em 29/11/2020 06:00 / atualizado em 29/11/2020 07:27
 (crédito: Victor Hugo Cecatto/Divulgacao)
(crédito: Victor Hugo Cecatto/Divulgacao)

Jornalista, biógrafo, ficcionista, letrista, roteirista, produtor musical, apresentador de tevê, Nelson Motta são vários. Todas essas facetas e outras mais estão evidenciadas na autobiografia desse personagem que, há cinco décadas, como testemunho ocular e auditivo da história, com sensibilidade e talento, tem contribuído para a construção de um rico e gigantesco painel das artes e da cultura brasileira. No prefácio ele deixa claro que foram os mistérios da sorte, manifestada ao longo da trajetória, a primeira inspiração para escrever o livro.

Não por acaso De cu pra lua é o título da obra a obra na qual, em 500 páginas, Nelsinho, como o autor é chamado pelos amigos e parentes, faz o relato dos dramas, comédias e momentos felizes e relevantes que viveu. Sob essa denominação — utilizando-a na terceira pessoa — ele pode ter uma visão mais distanciada dos fatos. Nas muitas histórias que conta, dividida por capítulos, lembra, por exemplo, de encontros com personalidades icônicas, como Nelson Rodrigues, Rubem Braga, Di Cavalcanti, Glauber Rocha, Tom Jobim, Vinicius de Moraes, João Gilberto e Menininha do Gantois.

Pós-adolescente, Nelsinho foi parceiro de Dori Caymmi em Saveiros, interpretada por Nana Caymmi, vencedora da primeira edição do Festival Internacional da Canção, realizado em 1966, no Rio de Janeiro. Coautor de várias músicas, entre elas o megahit Como uma onda, composta com Lulu Santos; produziu discos de Elis Regina e Marisa Monte e Fernanda Takai; criou o grupo vocal Frenéticas, lançou 12 livros (Vale Tudo, a biografia de Tim Maia, transformou-se num best seller); e escreveu roteiros para musicais. Namorador, casou diversas vezes. Aos 76 anos, bisavô, conserva cativante n jovialidade. Ao Correio concedeu longa e elucidativa entrevista.

Ao utilizar a terceira pessoa para fazer o relato de sua história na autobiografia, o Nelsinho seria o seu alter ego?

Si, pero no mucho. Me parece mais um personagem independente sobre o qual tenho uma visão mais distanciada, mais critica, posso me permitir piadas com ele, e até elogios, porque sempre vi o Nelsinho como um personagem que conheço bem e tem uma história de vida bem especial.

Se a maconha afeta os neurônios do usuário, como conseguiu manter uma memória privilegiada, que armazenou mínimos detalhes dos dramas, comédias e mistérios?

Talvez porque eu tenha começado a fumar tarde, 22 anos, quando os neurônios já estavam formados, me dizem. O fato é que quanto mais fumo mais memória tenho, afinal, eu vivo dela! (risos)

Xixa (mãe), Dom Pepe (melhor amigo) e João Gilberto (ídolo) são pessoas mais importantes da sua vida?

Não. Meu pai é quem tem maior importância, não só pelo amor e pelos ensinamentos, escrevia maravilhosamente bem e me ensinou a escrever, mas porque foi a melhor pessoa que conheci em toda minha vida.

Como se sentia no Programa Flávio Cavalcante, além do antagonismo de Sérgio Bitencourt, quando ao emitir uma opinião, ouvia Zé Fernandes dizer em tom preconceituoso: “Nelson Motta é uma flor”?

(Risos) Era uma figuraça esse Zé Fernandes, seu tipo era o “odeio tudo”. Era feio como a necessidade, ainda mais baixinho que eu, muito mais velho, e fazia insinuações sobre minha masculinidade. Se fosse hoje, falaria: “O Nelsinho é um fofo”. O publico o odiava.

Ter nascido em “berço esplêndido”, com avô ministro do Supremo Tribunal Federal e pais ligados a nomes importantes da arte e a cultura, além da sorte, contribuiu para você ter a vida facilitada, em termos de contatos e portas abertas?

Claro! Isso faz parte da minha sorte, de ter nascido com o cu pra lua. Mas como digo no livro: o mais importante é que você faz com a sorte que recebe, para o bem ou para o mal. Acho que, com muito esforço e trabalho, consegui aproveitar minhas sortes.

Jornalista, letrista, versionista, articulista, apresentador de tevê e produtor. Qual dessas funções lhe trouxe mais satisfação?

O que mais gosto atualmente é de escrever. O que mais me diverte. Pode ser jornalismo, ficção, poesia... Mas tudo me deu muita satisfação e a mistura de tudo isso me deu ferramentas de trabalho. A musicalidade das letras me ajudou a escrever com ritmo. O jornalismo ajudou na ficção e vice-versa. O que menos gosto é de apresentações ao vivo. Fico muito nervoso.

Possuir a fama de “bonzinho” no universo da música popular brasileira lhe desagrada?

Muito pelo contrário, eu sou mesmo um “bom moço”, um baixinho simpático com sensibilidade artística e com espírito aventureiro e transgressor. É uma sensação maravilhosa se sentir aceito e querido. Sou bom moço mas detesto bom-mocismo, que é falso e covarde. Sou educado e respeitoso com todos, sempre fui, durante meus tempos de colunista nunca perdi um amigo por causa de uma notícia. Ser um “cara legal” não quer dizer que minha opinião não seja respeitada ou não tenha credibilidade. Modestamente, como disse o Caetano, fui o único critico musical do Brasil que se afirmou sem falar mal de ninguém. Sim, é possível, basta ignorar o lixo e jogar luz nas novidades.

Ter convivido com Nelson Rodrigues, João Saldanha, Rubem Braga, Glauber Rocha, Di Cavalcanti e Mãe Meninha do Gantois, ícones da cultura brasileira, teve que importância para você?

Foi uma puta sorte, né? Ter cruzado com essas pessoas tão especiais, ter aprendido com elas, ser até amigo íntimo de algumas delas, como Glauber e Nelson.

Parceiro de Dori Caymmi, em Saveiro, e de Lulu Santos, em Como uma onda; autor da belíssima letra de Eu te desejo amor (versão de canção de Charles Trenet); produtor de disco de Elis Regina, e responsável pelo lançamento de Marisa Monte e Frenéticas. Qual desses eventos você considera o de maior relevância?

Fiz a letra a pedido de Bethania, que é uma ordem e um privilégio para mim. Foi a terceira versão que fiz para ela e chorei quando ouvi. Produzir Elis, Marisa e as Frenéticas reafirmam meu amor pelo novo e pela diversidade musical. Ter produzido qualquer uma delas já faria a alegria de qualquer produtor.

Marília Pêra foi a figura feminina mais marcante em sua vida?

Sim, me deu duas filhas maravilhosas, onde ela continua presente. Ficamos juntos por uns seis ou sete anos, nos separamos “definitivamente” umas 200 vezes (risos). Mas, depois, ficamos muito amigos. Um gênio no palco, me ensinou muito sobre teatro. E sobre a vida real.

Avesso a partidos e torcidas, você foi ao lado de Chico Buarque, Hugo Carvana, entre outros, fundador da Young Flu. Que lugar o futebol ocupa atualmente em seu dia-a-dia?

Foi num tempo, 1967/68, quando não havia nenhuma violência nas organizadas, um tempo romântico, criamos a Jovem Flu para pressionar a diretoria a comprar jogadores, para empurrar o time. Amo futebol, continua ocupando um espaço central nos meus afetos. Vai, Fluzão!

Você veio a Brasília em 1960, quando a nova capital era ainda um canteiro de obras; depois voltou na década seguinte com Márcia Mendes, para serem mestres de cerimônia num baile de debutantes no Clube do Congresso. Chegou a retornar à cidade em visita à Drica, “a morena tatuada”?

Depois disso, fui a Brasília muitas vezes para palestras e apresentações. Às vezes, vou visitar a Drica, mas, claro, ela prefere me visitar em Ipanema. Mas Brasilia com a Drica também é muito melhor.

Tido como referência para as novas gerações de jornalistas da área de cultura, Noites Tropicais deve ser visto como o seu livro mais importante?

Talvez. É história. Mas ele termina em 1992, com a minha ida para Nova York. O do Tim Maia é o mais popular de todos. Mas o que eu mais gosto é o romance Ao som do mar e a luz do céu profundo. O De cu pra lua é meio uma mistura disso tudo.

É do seu DNA manter viva, como avô, a eterna juventude?

Avô não, bisavô do Rafael, o popular Rafa, de um ano e meio, filho do meu neto Joaquim. Adoro meus três netos, faço tudo que eles querem, as regras para eles na minha casa são “não há regras”. Também aprendo muito com eles, que são totalmente digitais de fábrica. Me atualizam e rejuvenescem.

Além de Anitta, de quem é amigo, quem mais vê como destaque nos diversos segmentos da atual cena musical do país?

Tim Bernardes e O Terno, Alice Caymmi, IZA, Chiquinho Brown, Baiana System, Baco Exu do Blues, Emicida, Ana Cañas, Ludmila...

Se relaciona bem mantém com as redes sociais?

Como mostrou o documentário O Dilema das Redes, é um veneno. Me relaciono razoavelmente. Não sou “viciado”. Acompanho sem me meter. Detesto polêmicas, gosto de harmonia. Não tenho o menor interesse sobre o que acham de mim, para o bem ou mal, ignoro, tenho mais a fazer.

Como “radicalmente liberal”, que tipo de incômodo lhe traz a atual situação do país nas áreas política, econômica, social e cultural?

Totalmente. Tudo que esse governo representa é o oposto de radicalmente liberal. Bolsonaro nunca foi liberal em economia, é estatizante, nacionalista, protecionista, como os mais velhos da velha política.Tudo que vem dele é estúpido, tosco, ignorante, sem educação, tenho muita vergonha de termos um presidente desses que se tornou um deboche no mundo todo.

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  • Nelson Motta
    Nelson Motta Foto: Victor Hugo Cecatto/Divulgação
  • De cu pra lua
    De cu pra lua Foto: Reprodução
  • rédito: Canal Curta!/Divulgação. Cultura. 101 Canções Que Tocaram o Brasil. Na foto, Nelson Motta.
    rédito: Canal Curta!/Divulgação. Cultura. 101 Canções Que Tocaram o Brasil. Na foto, Nelson Motta. Foto: Canal Curta!/Divulgação
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