Pérolas negras

Acervo Cultne completa 40 anos de registros da história negra do Brasil e luta para manter no país, e acessível na internet, vídeos raros que mostram a relevância da população preta para a constituição nacional

Adriana Izel
postado em 07/12/2020 21:24
 (crédito: Cultne/Divulgação)
(crédito: Cultne/Divulgação)

A história da população negra no Brasil nunca teve espaço condizente à sua importância nos livros didáticos, sendo praticamente invisibilizada ao ser reduzida à escravidão. No entanto, da comunidade preta brasileira, surgiram líderes e movimentos importantes para as mudanças sociais e a constituição do país. Nessa lista, estão pessoas como a socióloga Lélia Gonzales, que inspirou a professora e ativista norte-americana Angela Davis, referência mundial na luta contra o racismo, e o ator e escritor Abdias de Nascimento, responsável pelo Teatro Experimental do Negro, apenas para citar dois nomes que, apesar da relevância, seguem desconhecidos por boa parte dos brasileiros.

Nos anos 1980, atentos às movimentações contra o racismo que ocorriam no país, como o surgimento do Movimento Negro Unificado (MNU), na década anterior, dois grupos perceberam a necessidade de registrar em vídeo a efervescência negra que se desenhava no Brasil, mas estava longe das grandes mídias. Assim, surgiram a Enúgbarijo Comunicações, fundada por Ras Adauto e Vik Birkbeck, e a Cor da Pele Produção e Vídeo, iniciativa de Filó Filho e Carlos Medeiros. A partir do conteúdo captado pelas duas produtoras píoneiras, surgiu a Cultne — Acervo da Cultura Negra.

“Fui um negro que furou a bolha. Como na maioria das famílias negras da década de 1950, (na minha) sentíamos resquícios da escravidão. Falta de acesso à educação, o negro tinha espaço delimitado... Fui o primeiro engenheiro formado da minha família. Isso aconteceu porque meu pai, um mecânico, e minha mãe, uma empregada doméstica, conseguiram bancar meus estudos. Tive uma formação diferenciada da dos outros jovens negros. Conseguia ler livros, ter acesso à música e às revistas. Olhava as revistas negras americanas e pensava: ‘Esses caras estão num patamar em que o Brasil não está’. Isso quando eu tinha de 18 a 20 anos. Aos 24, decidi basicamente cuidar da questão negra. Eu queria ser uma pessoa que pensava e executava ações para a minha comunidade”, lembra Filó Filho.

Tal desejo o motivou a deixar a engenharia e seguir para o marketing e o audiovisual, encontrando no caminho outros como ele, caso de Medeiros, Adauto e Birkbeck. Em seus projetos paralelos, os quatro saíram registrando tudo o que podiam e que tivesse relação com a comunidade negra brasileira. “Esses dois grupos geraram um material ao longo das décadas, sem pensar que um dia seria referência para uma nova geração”, comenta Filho, referindo-se ao Cultne, onde hoje é possível acessar materiais gerados pelas duas produtoras.

Entre as pérolas do acervo estão, por exemplo, registros da passagem de Gilberto Gil e de Pelé pela África no centenário da abolição da escravidão, em 1988, depois utilizados no documentário Refavela 40 (2019), produzido pela HBO. Também há raríssima imagem do I Encontro Nacional de Mulheres Negras (1988) realizado em Valença, no interior do Rio de Janeiro, com participação de 440 mulheres, entre elas, a ativista Luiza Bairros, que iniciou a militância no Grupo de Mulheres do Movimento Negro Unificado (MNU) da Bahia.

Lélia Gonzalez em ação na Marcha do Movimento Negro no 20 de Novembro de 1983 e quase uma hora de fala de Beatriz Nascimento, outro grande nome do movimento negro feminino, são outras joias do acervo. Além disso, há o único registro em vídeo da visita de Nelson Mandela ao Rio de Janeiro, em 1991, quando se encontrou na Praça da Apoteose com Martinho da Vila, Tim Maia, Cidade Negra, Alcione, Taiguara, Leci Brandão, Emílio Santiago e Mombaça.

História ameaçada

Em 2001, o acervo em VHS começou a ser digitalizado. Em 2009, o material, composto por quase 3 mil vídeos, ganhou espaço virtual de acesso gratuito, permitindo que qualquer pessoa possa revisitar esses e outros momentos históricos. “De lá para cá, a gente tenta buscar visibilidade maior, para que o acervo receba mais recursos e possamos digitalizar todo o material. O que está na internet é 30% do que temos. Dói ver esses outros 70% se perdendo, porque são conteúdos em fita magnética e película. É um tesouro histórico que está se perdendo, e sabemos que o Brasil é um país sem memória”, destaca Filho.

Caso não consigam, os criadores do Cultne podem se ver obrigados a enviar o material para outros países, que já demonstraram interesse em preservá-lo. Segundo Filho, a maior parte dos acessos ao acervo vem dos Estados Unidos, onde universidades voltadas para a população negra têm departamentos dedicados à história brasileira. Tal solução, no entanto, não é vista como a ideal. “Imagina nosso material indo parar em outro país. É muito doido isso”, lamenta.

Ao mesmo tempo em que luta para preservar registros tão importantes, Filó Filho se dedica a passar o bastão para as novas gerações. “Hoje, tenho no acervo toda uma geração de filhos e netos de personagens que lá estiveram”, comenta. Um exemplo é a família de Lydia Garcia, pioneira do movimento negro, hoje moradora de Brasília. A ideia, explica, é formar jovens negros mais bem informados. “Quando eu tinha 10 anos, era proibido entender e falar sobre o racismo. Meu pai dizia: ‘Isso não existe, isso não é bom, vai te prejudicar’. Tinha medo, era condicionado a dizer que vivíamos numa democracia racial. Hoje, com 10 anos, uma criança já sabe. Isso é demais, é fruto do nosso trabalho, fruto do movimento negro”, avalia.

 

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História pessoal e coletiva

 (crédito: Jef Delgado/Divulgação)
crédito: Jef Delgado/Divulgação

“Um Emicida não surge do nada. É (resultado de) uma série de outras movimentações, que aconteceram na cultura, na política, na intelectualidade brasileira, de gente que expandiu o entender deste país.” É assim que o rapper paulista Leandro Roque de Oliveira, o Emicida, explica por que decidiu transformar AmarElo — É tudo pra ontem em um filme sobre a cultura negra, e não apenas em um registro sobre ele e seu mais recente álbum, AmarElo.

O documentário estreia hoje na Netflix e é mais um desdobramento do CD de 2019, que deu origem a Prisma, projeto que inclui mais um documentário, um filme e ações sociais. Na produção, o espectador acompanha o trabalho do artista desde o conceito de AmarElo até o apoteótico show no Theatro Municipal de São Paulo, em novembro do ano passado. Para que a audiência possa entender as mensagens do álbum e de como Emicida chegou até elas, o rapper propõe um mergulho no passado negro. Estão ali, por exemplo, a origem do samba, a representação negra na Semana de Arte Moderna de 1922 e a luta do Movimento Negro Unificado (cujo ato inaugural, em 1978, se deu na escadaria do teatro escolhido, não por acaso, pelo rapper para realizar a apresentação).

“Acho que tem uma tendência natural de observar tudo aquilo e dizer que é um bom extrato da produção negra nos últimos 100 anos. Na verdade, ele é isso também. Mas o documentário joga luz em uma parte significativa da história do Brasil, que foi invisibilizada e à qual nem os próprios brasileiros tiveram acesso”, analisa Emicida em entrevista ao Correio.

O objetivo do artista é alcançado por meio de uma narração da história feita por ele mesmo mesclada com cenas da gravação de AmarElo e do show. São incluídas ainda imagens de acervo obtidas com instituições como Cultne, Ipeafro (Instituto de Pesquisas e Estudos Afros Brasileiros) e Laboratório Fantasma, além de animações que ajudam a retratar visualmente aquilo que ficou de fora dos registros ao longo da história brasileira.

“Acho que a gente conseguiu contar essa história de maneira convidativa e emocionante para que as pessoas entendam que, sem uma Lélia Gonzalez, sem um Abdias do Nascimento, não haveria um Emicida. Hoje, a gente tem a oportunidade de ver quais são as consequências do ativismo nos últimos anos”, afirma. Consequências que, segundo o rapper, “são todos os nossos sonhos, na iminência de se tornarem realidade”. Por isso, ressalta, não quis mostrar sua trajetória pessoal apenas, mas uma história coletiva. “Não é uma história minha. A gente está só usando o AmarElo como fio condutor. Na verdade, este é um trabalho conjunto com gerações que vieram antes, com pessoas que nem estão mais aqui, mas fazem parte desse fio condutor. Se a gente não se encontrar, nada acontece.” (AI)

 

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