Do jornalismo, Natara Ney herdou a simplicidade e a linguagem direta e pontual. No cinema, a pernambucana, que é montadora de filmes como Divinas divas (de Leandra Leal), descobriu a importância dos silêncios e do olhar. Desse duplo aprendizado, ela fez Espero que esta te encontre e que estejas bem, documentário que abre, hoje, a Mostra Oficial Longa-Metragem do 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.
Graças à fome e ao desejo de contar histórias, Natara criou mais um exemplar do cinema pernambucano a ganhar o mundo. Há 10 anos, ela se embrenhou no enredo por trás do lote de cartas de amor entre os desconhecidos Oswaldo e Lúcia. As correspondências estavam reunidas numa banca da Feira da Praça XV, no Rio de Janeiro.
O amor que resulta na coragem para lutar é o que interessa à diretora, que, no cotidiano, se diz imersa no choque de duras notícias transmitidas via rádio e que a fazem chorar, com as mortes em frente de casa ou do supermercado. Nesse contexto, explica, busca a cura. “Uma história de amor consegue curar, dar esperança. Mesmo em tempos tão adversos, a flor do amor cresce nas brechas desse concreto de desafeto. Para não desabar, me refugio nos afetos, me refugio nos braços do amor e crio forças para propor as mudanças que posso”, conta, ao Correio, Natara, que teve, ela também, de encontrar coragem para romper concretos e estrear na direção. “Nunca pensei que eu, uma preta nordestina, poderia um dia dirigir um filme”, observa a artista de 53 anos.
No bar
Alimentando-se das juras de amor que se eternizam, o documentário embaralha linhas cronológicas do tempo. A diretora o descreve como um filme feito hoje, que veio do ontem e vai para o amanhã. Para além da inspiração em escritos de Conceição Evaristo, Adriana Falcão, Manoel de Barros, Dandara Suburbana, Carmem Faustino e bell hooks, a vivência de Natara, no bar comandado pela mãe, afiaram sua perspectiva.
Testemunhando, Natara viu pessoas embebidas em doses de uísque barato destilarem enredos de amores. “Tantas vezes vi homens e mulheres prantearem suas paixões, vi outros tantos rirem das conquistas fugazes. Também vi muita mulher machucada de amor errado. Enquanto escrevia o roteiro do filme, retornava para a pequena cozinha (do bar) com cheiro de coentro; revia os rostos, as lágrimas e os sorrisos”, entrega.
A narração idealizada, meramente informativa, pouco a pouco, foi reconfigurada. “Quando começamos a montagem do filme, percebi que não poderia falar sobre amor sem me expor um pouco. Estava ali com os meus sentimentos também”, avalia. Reunião da própria história com de amigos embalaram o processo. “Meu amor está ali (no filme) como estão outros tantos”, diz, ao definir parte da emoldurada colcha de retalhos sentimentais projetadas.
Sonoridade
Músicas como El día que me quieras (no timbre da atriz Divina Valéria), Hino ao amor (com Laila Garin), Namorada que sonhei (por Ricco Viana) e Ave Maria (na voz de Sandra Menezes) imprimem emoção à fita. “No repertório, trouxe a sonoridade de bares em que andei, com direito a radiolas de ficha, mas há músicas que minha mãe e avó cantavam enquanto faziam tranças no meu cabelo, além daquelas músicas que Oswaldo e Lúcia ouviam para viver a saudade”, explica Natara. Tons pessoais e vivências nas vozes dos intérpretes foram requisitados na trilha sonora.
Longe de facilidades, Natara assume ter se esmerado no trabalho, dia a dia. O abatimento da diretora era momentâneo, fosse pela falta de verba para pagar direitos para o uso de músicas, fosse pelo veto do nome em editais. “Hoje, vendo este desmonte da Ancine (Agência Nacional do Cinema), me preocupa muito o futuro do nosso cinema, da nossa cultura. Enquanto fazia o filme, nunca pensei em desistir, sempre tive a certeza de que precisava contar esta história e que ela chegaria às telas”, conta a cineasta. Entre amigos qualificados e profissionais, numa corrente afetiva e de reconhecimento, Natara não esquece de salientar as mulheres produtoras do filme, um verdadeiro sonho: Danielle Villanova, Carla Francine e Marilha Assis.
Assista
O Festival de Brasília 2020 ocorre de maneira virtual. O filme Espero que esta te encontre e que estejas bem será transmitido hoje, às 23h, pelo Canal Brasil. Mais informações sobre as sessões do festival, acesse cultura.df.gov.br/53-fbcb-programacao
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Lázaro e Loach nas atividades paralelas
O 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, que começa hoje, vai além das três mostras de filme programadas. Serão realizados também, até a manhã do dia 21, debates, oficinas, mesas temáticas e palestras sobre os mais variados temas ligados à produção audiovisual. “As atividades paralelas aprofundam a identidade do Festival, uma vez que põem em discussão o fazer do audiovisual brasileiro tanto no campo da política pública quanto no da linguagem e da estética”, afirma o secretário de Cultura e Economia Criativa do DF, Bartolomeu Rodrigues. “Quem mergulhar nessas atividades, sairá certamente transformado”, completa.
Entre as atividades oferecidas, Rodrigues destaca, por exemplo, as participações do ator brasileiro Lázaro Ramos e do cineasta inglês Ken Loach. O primeiro integrará, ao lado de Renata Martins e Camila Moraes, o debate intitulado Cinema negro. A discussão, que terá mediação do cineasta Joel Zito Araújo, ocorre amanhã, a partir das 17h.
Já o premiadíssimo Loach — cuja produção recente, em filmes como Eu, Daniel Blake (2016) e Você não estava aqui (2019), se debruça sobre a situação dos trabalhadores pouco qualificados, que sofrem com a precarização das relações trabalhistas e o abandono por parte do sistema previdenciário — falará em um encontro intitulado O cinema como ferramenta política. A conversa, mediada pela jornalista e documentarista Flávia Guerra, ocorre também amanhã, a partir das 11h.
Zelo
Todas as atividades paralelas ocorrerão de maneira remota e poderão ser acompanhadas em salas da plataforma Zoom, sem necessidade de inscrição prévia, com exceção das oficinas, para os quais os interessados devem enviar e-mail (veja serviço nesta página). As atrações com potencial de atrair mais público serão transmitidas também no canal do YouTube da Secretaria de Cultura. O secretário Bartolomeu Rodrigues, no entanto, diz que todos os eventos foram pensados cuidadosamente. “Todas as mesas são igualmente importantes. Todas foram pensadas em detalhes e zelo”, pontua.
Rodrigues ressalta ainda que o formato virtual acabou enriquecendo o conjunto de convidados que integram as atividades paralelas. “Trazer toda essa quantidade e qualidade de gente para Brasília seria uma pequena fortuna”, afirma.
*Estagiário sob a supervisão de Humberto Rezende
Programe-se
As atividades paralelas do 53º Festival de Brasília ocorrem de hoje até o dia 21. A programação completa pode ser conferida no site cultura.df.gov.br/53-fbcb-programacao. Para a maioria dos eventos, não é necessária inscrição. Para as oficinas, um e-mail deve ser enviado para mesasfestiival53@gmail.com.