Matar ou morrer

O veterano cineasta Orlando Senna fala sobre Longe do paraíso, filme inspirado na história de Caim e Abel e que será exibido, hoje, no Festival de Brasília

Ricardo Daehn
postado em 15/12/2020 21:36
 (crédito: Sueli Seixas/Divulgação)
(crédito: Sueli Seixas/Divulgação)

A história bíblica de Caim e Abel foi o ponto de partida para que o veterano Orlando Senna, 51 dos 80 anos de vida dedicados ao cinema, criasse sua primeira “ficção pura”, Longe do paraíso, longa a ser exibido hoje na Mostra Oficial do 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. A exemplo de Caim, o protagonista do filme, Kim (Ícaro Bittencourt), se sente abandonado e odiado por Deus. “O jovem Kim é um matador de lideranças camponesas e tem um profundo medo de morrer. Ele comete um erro e é condenado à morte pela organização criminosa que o contrata”, adianta Senna, em entrevista ao Correio.

Grande impasse se instala quando Kim, devido a seus antecedentes na organização, recebe uma chance de sobrevivência: será poupado desde que execute a líder camponesa Bel, sua irmã (Emanuelle Araújo). “Bel, assim como Abel, acredita piamente na bondade e na onipresença de Deus”, conta o diretor, que chega ao festival com credenciais invejáveis. Criador de roteiros para filmes de Ruy Guerra e Hector Babenco, Orlando Senna atuou no lendário Centro Popular de Cultura, foi professor na prestigiada Escola de Cinema de Santo Antônio de Los Baños (Cuba) e secretário do Audiovisual, quando o Brasil estimulava o pensamento por meio de um básico (mas presente) Ministério da Cultura.

O filme atual de Senna, única ficção a concorrer na Mostra Oficial de longas, apontaria para desesperança? “Acho que sou um otimista incorrigível. Sei que a humanidade está trilhando o pior dos caminhos que poderia trilhar, que é o ódio. Mas sei também que, na mesma medida em que o ser humano entra em grandes tragédias coletivas — as Cruzadas, as Guerras Mundiais, o nazismo —, tem a capacidade de superá-las”, observa. Nada vem fácil, entretanto. “Com grandes prejuízos, com perdas enormes, existe a capacidade de superação. O que sinto, nesse momento, é o estilhaçamento do capitalismo e o aumento da violência estrutural, da qual também somos vítimas. Como sair do buraco, não sei. Mas sairemos”, pontua.

 

Qual é o papel da religião em Longe do paraíso e na nossa vivência atual? O filme traceja alguma ponte?
O cenário do filme é o universo rural do Brasil, a nossa grave situação agrária, a disputa pela terra entre agricultores e grandes empresas agropecuárias, a disputa desigual pelo mercado entre a agricultura familiar e a agricultura industrial, a violência enorme desse conflito, o número impressionante de líderes camponeses assassinados todas as semanas. No filme, pesa a história inspirada no mito bíblico de Caim e Abel, o pastor e o agricultor. Quanto à religião em si, na atualidade, parece-me que está vivenciando uma exorbitância medieval. Em muitos aspectos, também na relação com o poder político. Inclusive com relação à qualidade dos sacerdotes, muitos deles metidos em falcatruas, corrupção, delitos sexuais. Esse é um assunto sumamente importante na crise civilizatória, humanitária, sanitária, psicossocial e econômica que vivemos.


A simplicidade é sempre o caminho mais poderoso no construir fílmico?
A simplicidade é uma estratégia para conquistar o interesse do espectador. A maioria dos cineastas busca a simplicidade e, às vezes, não é fácil. Do meu ponto de vista, o aspecto mais importante é a síntese. O cinema, com sua linguagem de sonho, é uma arte sintética, maneja apenas duas intervenções: com o tempo real e com a elipse. Ou seja, o tempo corrido e saltos nesse tempo. O que extrapolava no roteiro de Longe do paraíso era o não essencial na narrativa. Creio que isso foi controlado na realização do filme. As informações vão sendo passadas com economia de meios e de floreios, de enfeites. O que tentei foi elevar as circunstâncias narrativas a um nível de emoção pura, sempre na fronteira da paixão, sempre na iminência da morte. Trata-se de uma tragédia.


Acredita que um artista sempre imprime ideologia nas obras?
Imprimir ideologia nos filmes depende de que acepção dessa palavra estamos usando: como um conjunto de ideias, de visões de mundo relacionadas a ações sociais e políticas; ou como ferramenta de convencimento, de persuasão, de dogma, de determinação a ser obedecida pelos outros. Se estamos nos referindo à primeira acepção, creio que os cineastas, sim, imprimem ideologia em suas obras naturalmente. Quanto aos dogmas, são poucos os artistas que os adotam. Arte e dogma são conflitantes.


Há isenção na tua arte?
A isenção não existe no cinema. Nem na ficção, nem no documentário. O que os cineastas mostram ao mundo é a sua verdade pessoal, o que acreditam individualmente. Verdade ou crença que podem ser coincidentes em outras pessoas ou não. O próprio conceito de verdade está cada vez mais complicado em termos de coletividade. Cada vez mais, a verdade está com o indivíduo. Segundo os Evangelhos, essa pergunta foi feita a Jesus: o que é a verdade? Ele respondeu: “A verdade sou eu”. Eu destilo em meus filmes e meus livros é a minha vontade de melhorar a humanidade, de mudar o mundo.


Como é ser o diretor da única ficção em longa a concorrer?
Longe do paraíso é meu único filme, como diretor, que é ficção pura. Escrevi livros de ficção, até de ficção científica, escrevi muitos roteiros de ficção, filmados por outras pessoas. Mas, como diretor, é a primeira vez que não mesclo a ficção com a realidade, o argumental com o documental. Sempre fiz docfic. Para mim, o universo do cinema é sempre dual e assim deve ser, para que fique mais próximo da vida humana, que é pura dualidade. Em Longe do paraíso fiz diferente, queria experimentar a sensação. Estar, com um filme de ficção, entre documentaristas da mostra oficial do Festival de Brasília, foi uma surpresa, mas também uma reafirmação da minha dupla visão da vida e da arte. Um filme é cinema, e ponto, a arte (tecnológica) mais psicopenetrante que o engenho humano já inventou. Uma peça é teatro, e ponto; a arte imortal, sempre o eu e o outro, o eu e o você.


Como tens vivenciado o cotidiano com a pandemia?
Com paciência, quarentena e atividade intelectual. Estou escrevendo, pensando em novos projetos, fazendo exercícios de futurismo com relação a que tipo de cinema vai aparecer depois da pandemia, como vai se desenvolver a comunicação e a arte on-line. Acabo de ministrar minha primeira oficina on-line, a Griô Cibernético, sobre criação de narrativas contemporâneas. Com minha produtora e querida amiga Solange Souza Lima Moraes, estamos tentando armar a realização de um novo filme. Com a ameaça do fascismo sobre nossas cabeças, o que os artistas e intelectuais devem fazer é lutar produzindo arte engajada e de alta qualidade e expandindo nossa cultura.

 

 

 

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Mensagens curtas e certeiras

 (crédito: Daiane Rosário/Divulgação)
crédito: Daiane Rosário/Divulgação

O cinema de curta-metragem sempre teve dificuldade para encontrar espaço fora do circuito de festivais. De tempos em tempos, a obrigatoriedade de os cinemas exibirem filmes no formato foi proposta, e até colocada em prática, mas sem continuidade. E, assim, os curtas ficaram sem um canal de distribuição adequado. Bem, até a chegada da internet e da era dos vídeos virais.

Para cineastas que participam do 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, filmes de poucos minutos nunca foram tão atuais. “Estamos na era da cibercultura, da informação digital. O curta possui um formato que tem tudo a ver com estes tempos”, analisa Anderson Bardot, diretor de Inabitáveis, um dos curtas selecionados para a Mostra Oficial Curta-Metragem, que começa hoje.

Assim, enquanto produtores de longas entendem a necessidade de um festival 100% on-line, mas lamentam o fato de seus filmes não serem apresentados na imensa tela do Cine Brasília, a turma dos curtas não sofre tanto. “(Com esse formato), a gente dá um respiro para as pessoas que estão em casa e não podem sair nesta quarentena. Inclusive, abre-se uma discussão sobre as novas formas de distribuição do cinema”, complementa Bardot.

Denúncias

Nesse contexto, ser capaz de transmitir uma mensagem — poética ou política, ou ambas —, em cinco, 10 ou 15 minutos, passa a ser o desafio. E mensagens incisivas não faltam na lista das 12 obras selecionadas, entre 453 inscritas. “Para mim, (realizar o filme) é ser porta-voz de uma palavra de responsabilidade sobre o que somos, quem somos”, afirma a baiana Lilih Curi, diretora de Distopia, que gira em torno de um casal de irmãos que precisa cuidar do pai que sofre com o mal de Alzheimer. “É um filme-denúncia, antes de mais nada. Ele atenta para as nossas mazelas, para aquilo que não gostamos de assumir que somos: uma sociedade violenta.”

A denúncia das mazelas brasileiras também norteou Rodrigo Ribeiro, de Santa Catarina, criador de A morte branca do feiticeiro negro. “Nesse período tão obscuro que o país atravessa, tratar sobre o tema da escravidão, de seus desdobramentos e do funesto legado que deixou se faz mais que urgente e necessário”, afirma. “A brutalidade dos tempos presentes só intensifica a necessidade de se contar histórias marginalizadas e apagadas, que sempre tiveram à sombra dos registros oficiais.”

*Estagiária sob a supervisão de Humberto Rezende

 

ASSISTA
O Festival de Brasília ocorre de maneira virtual. Longe do paraíso será transmitido hoje, às 23h, no Canal Brasil. Já os filmes da Mostra Oficial Curta-Metragem estarão disponíveis para o público, a qualquer hora, de 16 e 20 de dezembro, no site canaisglobo.globo.com. Para mais informações, acesse cultura.df.gov.br/53-fbcb-programacao

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