Brasília nas telas

Mostra do Festival de Cinema dedicada ao audiovisual feito na cidade tem início hoje, com exibição de quatro longas e oito curtas. Documentários formam a maioria da seleção

Adriana Izel
postado em 16/12/2020 21:02
 (crédito: Dacia Ibiapina/Divulgação)
(crédito: Dacia Ibiapina/Divulgação)

Tradição no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, a Mostra Brasília, que começa hoje e segue até domingo, com exibição em streaming, é caracterizada por apresentar um panorama do cenário audiovisual do DF. Na 53ª edição do evento, a seleção composta por 12 filmes — quatro longas-metragens e oito curtas-metragens — segue a tendência do festival, com predominância de documentários: nove, ao todo.

“A tradição do documentário no Brasil cresceu. Tem muito filme sendo feito nesta fase de pandemia e também por causa dos problemas com a Ancine, nos últimos dois anos (a falta de recursos para o setor do audiovisual). O documentário tem sido uma alternativa de modelo de produção”, destaca a cineasta Dácia Ibiapina.

A diretora é responsável por Cadê Edson?, um dos quatro longas da Mostra Brasília. Antes de chegar ao festival, a produção percorreu outros eventos no Brasil e teve exibições na França e na Inglaterra, além de estrear no início do ano na Mostra de Cinema de Tiradentes (MG).

A montagem surgiu de um trabalho iniciado por Dácia em 2012, quando acompanhou a Ocupação Novo Pinheirinho, em Ceilândia, feita pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST). No ano seguinte, ela registrou a Ocupação Jarjour, na entrada da Epia, em Taguatinga. Até que, em 2015, ficou sabendo que alguns dos militantes haviam sido presos, entre eles, Edson Francisco da Silva. A partir daí, a diretora iniciou a busca pelo homem de 40 anos, o que perpassou a ocupação e a desocupação do Torre Palace, em 2016. “O filme percorre essa trajetória dos movimentos, desde as primeiras ocupações até a criação do MRP (Movimento Resistência Popular)”, explica.

Personagens centrais

A partir de um personagem, Dácia acaba mostrando uma realidade ampla, estratégia narrativa utilizada em outras produções da Mostra Brasília. O recurso é utilizado, por exemplo, no longa-metragem O mergulho na piscina vazia (Edson Fogaça), que conta a história do cabeleireiro Derly Silva, e no curta Delfini Brasília, olhar operário (Maria do Socorro Madeira), que narra o dia a dia do marceneiro João Batista Delfini.

O cineasta Edson Fogaça conta que soube da história de Derly Silva, que foi cabeleireiro da primeira-dama Ruth Cardoso durante a presidência de Fernando Henrique Cardoso, pela amiga Isabel de Paula, que trabalhou com o profissional e o reencontrou 20 anos depois, modificado pelo consumo abusivo de crack.

Fogaça acompanhou Derly por um ano e documentou o desejo do cabeleireiro de vencer a dependência. Além do depoimento do próprio personagem, o documentário conta com depoimentos de pessoas ligadas a ele. “Fiquei preocupado em abordar um tema que eu não dominava. Mas fui construindo a narrativa a partir do que ele me contou. Também buscamos um psicólogo. A ideia era abordar isso da forma mais humana possível”, conta.

Esta será a primeira exibição de O mergulho na piscina vazia. Fogaça se diz empolgado com as exibições em streaming. “O contato com o público é insubstituível, mas acho interessante essa capilaridade. Vai chegar a mais pessoas”, avalia.

Olhar sobre a capital

Quando se trata da temática das produções, a Mostra Brasília também aponta outro padrão: a prevalência de obras em homenagem à capital federal, com histórias que celebram a memória afetiva da cidade no ano do 60º aniversário. É o caso dos longas Utopia distopia (Jorge Bodanzky), sobre o período dos anos 1960 na Universidade de Brasília; e Candango: Memórias do Festival (Lino Meireles), que faz um panorama dos 50 anos do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro.

Entre os curtas estão Brasília 60 + 60: Do sonho ao futuro (Raquel Piantino), que retrata desde a ideia da construção da capital no Centro-Oeste até a nova geração; e Questão de bom senso (Péterson Paim), que traz o ponto de vista de Toniquinho, o goiano conhecido como “o verdadeiro pai de Brasília”, narrando a construção da cidade.

Apesar de se relacionar com as outras produções da mostra pelo tema, Brasília 60 + 60: Do sonho ao futuro é a única animação em todo o festival. “Acho curioso pensar que a animação pode ter um espaço menor em alguns festivais. Mas é importante as pessoas olharem para esse formato e para essa linguagem”, afirma Raquel Piantino, diretora do curta.

Narrativas ficcionais

Apenas dois filmes dos 12 da Mostra Brasília não tratam de histórias reais. Representando o gênero da ficção, a seleção tem Algoritmo, de Thiago Foresti, e Do outro lado, de David Murad. O primeiro se passa num futuro distópico em que um governo totalitário controla o fluxo de informações. A história é contada a partir da perspectiva de Nicole, uma estudante de veterinária de 18 anos que tem a vida investigada pelo Algoritmo.

Já a narrativa de Do outro lado é mais leve, discutindo o medo e o desejo pelo desconhecido, a partir da história de um menino que mora numa casa à beira de uma estrada. Diariamente, ele admira a beleza do outro lado da rua, mas sem coragem de atravessar a pista. Até que algo inesperado acontece.

“É um tema que me interessa muito. Tenho outros trabalhos que abordam a travessia, de ter coragem de meter as caras e ir para o mundo. Acho que esse filme consegue resumir isso. É um filme sem diálogo, só a solidão desse garoto e esse sentimento de que é preciso dar esse passo na vida”, define o diretor.

 

ASSISTA
O Festival de Brasília 2020 ocorre de maneira virtual. De hoje até domingo, na aba do Canal Brasil no site canaisglobo.globo.com, os filmes da Mostra Brasília podem ser assistidos em qualquer horário. Já o filme A luz de Mário Carneiro será exibido hoje, às 23h, pelo Canal Brasil. Para mais informações sobre as sessões do festival, acesse cultura.df.gov.br/ 53-fbcb-programacao

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Figura inigualável

Já de casa, a cineasta Betse de Paula, filha de um dos maiores produtores da áurea fase do Cinema Novo, Zelito Viana, traz ao 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro a lição de preservação de memória da cultura nacional, com o documentário A luz de Mário Carneiro, produto do Canal Curta!, que traça muito da obra do profissional, um dos maiores diretores de fotografia do cinema mundial. O filme é o terceiro a ser exibido, hoje, dentro da Mostra Oficial Longa-Metragem.

E, nesse sentido, a diretora celebra a resistência do evento. “Como é importante estar acontecendo o Festival! Isso de não se dobrar a uma realidade tão difícil. Cinema brasileiro é assim: cheio de reinícios, de invenções e de sobes e desces. É importante demais não deixar acabar”, sublinha, lamentando apenas as sessões diante do público, uma vez que o festival ocorre de maneira totalmente virtual. “Não tem a marca presencial do atuante público, que eu acho incrível! Mas, vamos sobreviver: vai dar tudo certo. Se acabar (o ciclo), começa de novo.”

O filme de Betse mostra a história de um artista que, até a morte, dado agravamento de um câncer em 2007, foi um desbravador, fosse como poeta, gravador, pintor ou realizador, faceta iniciada em produtos caseiros, feitos em 16mm. “No início, ele se parece com o Sebastião Salgado, com meu pai e também comigo: é a coisa de você filmar por amor, filmar por acreditar no projeto e investir. É o que me aproxima do Mário bastante”, avalia a cineasta. No cinema, a luz e as sombras “são tudo”, ressalta ela. E, na briga, a favor ou contra a dura e indomada “luz dos trópicos”, Carneiro fez “coisas incríveis”.

Desprendimento

Mário Carneiro teve uma parceria forte com Paulo César Saraceni, em filmes como Porto das caixas (1963), A casa assassinada (1971) e Capitu (1968). Foi uma pessoa muito talentosa, assumindo, por exemplo, os papéis de fotógrafo, codiretor e montador de Arraial do cabo (1958). E, para realizar tanto, fez uma aposta arriscada, contrariando a família.

“Ele ouvia: ‘Você vai deixar de ser arquiteto?’, justamente quando a arquitetura brasileira era o máximo. A família criticava”, conta Betse. Mas, desprendido, Carneiro esteve ladeado por gigantes, como Joaquim Pedro de Andrade, Glauber Rocha e Domingos Oliveira, além de ter depurado a visão de cineastas como Joel Pizzini (500 almas) e Fernando Cony Campos (O mágico e o delegado).

“A graça do Mário está nas histórias malucas dele, que tinha um humor muito próprio, um sarcasmo. Focamos ainda, no filme, o papel da análise na vida dele. No processo, foram 15 anos fazendo este longa”, explica Betse, em torno do inventário do mestre, aos 77 anos.

 

 

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