A beleza na simplicidade

A arte naïf é uma expressão das raízes do povo e uma resistência contra a elitização da arte. No Distrito Federal, curadores e espaços buscam dar visibilidade aos artistas

Devana Babu*
postado em 25/12/2020 19:53 / atualizado em 25/12/2020 19:53
 (crédito: Anoushe Duarte/Divulgação)
(crédito: Anoushe Duarte/Divulgação)

Nas barrancas do rio São Bartolomeu, na área rural de São Sebastião, um sítio que se transformou em espaço cultural abriga quase 300 obras de arte em estilo naïf. O termo francês, que significa ingenuidade, inocência, passou a designar uma forma de arte quando, em 1886, o pintor autodidata Henri Russeau, um inspetor de alfândega que pintava nas horas vagas, expôs no Salão dos Independentes e se tornou alvo do menosprezo dos artistas de vanguarda, detentores de uma tradição acadêmica. Seu estilo informal foi motivo de chacota, mas, logo, conquistou a curiosidade e simpatia dos artistas e do público.

O termo projetou-se sobre outros artistas que também vinham das classes populares e tinham formação autodidata, desenvolvendo um estilo próprio e alheio às convenções e formalidades da arte. “Hoje em dia, o termo vem sendo ressignificado e apropriado por artistas que entendem que o naïf pode representá-los, na contemporaneidade, em oposição a outros sistemas artísticos. Se, no começo do século 20, a arte moderna olhava para o naïf com um olhar de superioridade, como aquele que sabia menos e não dominava a tradição artística, hoje, o próprio naïf diz para essa arte intelectualizada que é, também, detentora de uma tradição, ou seja, que opera a partir de outras ideias, epistemologias, lógicas, mercado, sistema de museus, curadores e críticos”, observa a curadora e pesquisadora Ana Avelar, professora do curso de teoria, crítica e história da arte da Universidade de Brasília (UnB).

Expressão

Engenheiro agrônomo de formação, Odécio Visintin Rossafa Garcia conheceu a arte naïf na época da faculdade. Ele e os colegas de centro acadêmico ocuparam um teatro abandonado na cidade de Espírito Santo do Pinhal (SP), onde realizavam shows com artistas como Adoniran Barbosa, Gonzaguinha, Gilberto Gil e Quarteto em Cy. “O país vivia uma ditadura militar e havia a necessidade de haver forças de expressão que pudessem juntar os alunos e criar uma resistência nesses processos”, lembra Odécio.

Foi nessa época que entrou em contato com artistas como José Antônio da Silva, Jocelino Soares, Daniel Firmino, Orlando Fuzinelli, Edgard di Oliveira, apaixonando-se pela arte naïf. “Uma coisa que me fascinou muito foi o testemunho que os artistas naïf dão dessa resistência em relação ao desmatamento, à preservação das águas, da flora e da fauna, além de sempre retratar as artes populares”, explica o colecionador, que nasceu no campo e via nas obras representações saudosas da própria infância. “Vou buscar, ali, raízes e valores que nunca mais saíram da minha vida. São pintores que já tinham sido boia-fria, trabalhadores rurais, que colhiam laranja e café, como Jocelino Soares, que nasceu embaixo de um pé de café, ou José Antônio da Silva, que foi cortador de cana.”

Em 2008, depois de passar por diversos trabalhos interessantes e gratificantes para ele, Odécio finalmente voltou para o campo, estabelecendo-se na área rural de São Sebastião para se dedicar ao projeto de reconstrução ambiental da área, desgastada pela exploração de areia para a construção de Brasília. O sítio ganhou o nome de Barthô-Naïf, em homenagem ao rio que banha a região e vem sendo revitalizado, e à forma de arte de predileção dos proprietários.

Turismo

Em 2019, Odécio e a esposa, Shirlene Miranda, decidiram transformar o local em um espaço cultural e disponibilizar o acervo de quase 300 obras, muitas delas raras e importantes, aos visitantes, atentos ao conceito de turismo de base comunitária e ao desenvolvimento da região. O espaço vem passando por melhorias e será oficialmente inaugurado no ano que vem, com direito a bistrô e loja colaborativa com produtores orgânicos locais.

Desde aquela época da faculdade, Odécio não só coleciona quadros e bordados, como realiza a curadoria e organização de diversas exposições. Recentemente, promoveu uma mostra com pinturas naïf que retratavam obras literárias no Mercado Café, na 509 Sul. No momento, está em cartaz com a exposição Caipirismo — José Antônio da Silva e Jocelino Soares, no Sesc Bom Retiro, em São Paulo, com algumas das peças mais importantes do acervo. Enquanto isso, prepara a exposição Um olhar naïf nos tempos da covid-19 para o ano que vem, com trabalhos que retratam o momento da pandemia.

Entre os artistas do Distrito Federal, o colecionador enaltece nomes como Vera Marina, Anoushe Duarte e destaca o trabalho de Gersion de Castro, pintor oriundo do Paranoá e radicado em São Sebastião. “A arte naïf, em Brasília, é pouco conhecida e pouco se conhece dos artistas. Ainda tem muito a crescer. Tem uma busca muito grande por parte das embaixadas, mas as pessoas estão descobrindo, agora, essa arte”, constata.

A professora Ana Avelar avalia que é necessário haver um projeto mais contundente para valorizar esse tipo de arte. “O Centro-Oeste, como um todo, e o Distrito Federal, muito especialmente, têm uma produção autodidata enorme, muito variada e muito pouco visibilizada. Há poucas instituições que, de fato, mostram essa produção. Alguns museus e galerias, de arte contemporânea fazem exposições de alguns artistas, pontualmente, mas não é algo programático. O que me parece é que a gente teria que se organizar, justamente, para fazer um programa que desse vazão a essas produções, de forma estruturada. Por exemplo, que tivéssemos exposições físicas, quiçá, bienais”, aponta. Ana vem fazendo sua parte e coassina a curadoria da 15º Bienal Naïfs — Ideias para adiar o fim da arte, que fica em cartaz até julho no Sesc Piracicaba (SP).

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

 

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