Uma aliança de ouro entre o glamour das realizações de cinema e a praticidade de consumo dos filmes propiciada pelas plataformas de streaming favoreceram a sobrevivência da chamada sétima arte, em 2020. Até o ecoar do recém-estreado A voz suprema do blues, que recupera o valor da cantora Ma Rainey e marca a despedida nas telas do eterno Pantera Negra Chadwick Boseman (morto em agosto de 2020), muitos produtos audiovisuais fizeram barulho e inflamaram a conscientização dos debates, a exemplo de O som do silêncio (centrado no processo de ensurdecimento de um metaleiro) e Os 7 de Chicago, baseado em caso real de ativistas democratas acuados pelo governo, em fins dos anos 1960, com destaque para a figura do político Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen, que, em 2020, brilhou ainda em Borat: fita de cinema seguinte).
Com estratégias diferenciadas, como a da chegada, praticamente, simultânea ao streaming e nas salas de cinema de títulos como Mank, que explora bastidores bastante desconhecidos do clássico Cidadão Kane, as engrenagens do cinema se azeitaram. Confira, abaixo, os títulos audiovisuais que renderam no ano que se encerra.
Destaques
Emicida: AmarElo — É tudo pra ontem
Documentário trata de show do rapper brasileiro Emicida no Theatro Municipal, retomando a história dos negros no Brasil. Demarca momentos fundamentais da cultura negra, mostra o Movimento Negro Unificado, e apresenta detalhes e imagens das gravações do AmarElo, último disco de Emicida. Disponível na Netflix.
Black is king
Também conhecido como “o filme da Beyoncé”, foi um evento em 2020 e marcou a estreia da diva pop como diretora. A produção é uma visão conceitual da história de O Rei Leão, adaptando a trajetória de Simba a jovens africanos, mostrando semelhanças com a realidade de crianças de ascendência afro pelo mundo. Disponível no Disney+.
Hamilton
Estrondoso sucesso da Broadway, Hamilton estreou, em escala mundial, em 2020. Criado por Lin-Manuel Miranda, o musical é sobre o pai-fundador dos Estados Unidos Alexander Hamilton, o único imigrante na fundação do país. O gênero hip-hop é içado a protagonismo e traz um elenco original majoritariamente formado por negros e latinos. A gravação das apresentações de sucesso está disponível no Disney+.
O poço
Longa espanhol foi febre no início de 2020 devido às críticas que faz a como a sociedade divide os recursos, e como pessoas passam fome por conta do egoísmo de outras. O longa é ambientado no denominado poço, onde indivíduos são distribuídos em duplas, por andares. Quanto mais alto o andar, maiores as chances de cada um comer mais do banquete, irregularmente distribuído. Produção original da Netflix.
On the rocks
Escrito e dirigido por Sofia Coppola, conta a história da escritora Laura (Rashida Jones), que, com casamento instável, se reaproxima do pai, um playboy (papel de Bill Murray). Toca nas feridas abertas de relações familiares. Disponível na Apple+.
Soul
Lançado no Natal, a animação da Disney Pixar é uma reflexão sobre a alma e os propósitos da vida. Na trama, Joe é um professor de música que sonha em ser pianista de jazz. No entanto, quando o protagonista consegue a chance de tocar profissionalmente, sofre um acidente e vai parar no mundo das almas, de onde quer se libertar. De Pete Docter (Divertida mente), o longa está disponível na Disney+.
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E no escurinho do cinema
Entre abril e meados de outubro as salas de cinema seguiram no escuro, mas sem projeções de filmes, por causa das precauções demandadas pelo novo coronavírus. Num retrospecto, entretanto, até a chegadas nas telonas dos blockbusters Tenet e Mulher-Maravilha 1984, previstos como marcos para a retomada do hábito da ida ao cinema, uma corrente de boas imagens passou pela telona. Filmes sobre realidades de opressões de gênero e raciais fizeram coro, em 2020, com longas que contestaram as tiranias e legitimidade de alguns governos estabelecidos.
Crueldade, assédio e muita dose de esperança brotaram da exibição de Mulher, exemplar de sororidade, e no registro do painel das vidas de 2.000 mulheres espalhadas por 50 países. Na ficção, a personagem de Elisabeth Moss passou por misérias no longa O homem invisível, em que uma mulher desempregada fica à mercê do marido narcisista e sociopata. No combate ao universo misógino, Arlequina, a personagem heroína de Margot Robbie, fez o que pode (sem muito sucesso) em Aves de rapina, um dos aguardados filmes de 2020.
O desenvolvimento artístico de personagens femininas foi radiante no cinema. A diretora Greta Gerwig monopolizou elogios pela adaptação de Adoráveis mulheres. Versando sobre os bastidores do cinema, dois filmes chamaram a atenção, pela coragem feminina: Judy — Muito além do arco-íris rendeu Oscar de atriz para Renée Zellweger, irretocável, na personificação da nada moderada estrela Judy Garland; enquanto Bárbara Paz trouxe brilho na direção de um documentário elaborado na intimidade de seu cotidiano (Babenco — Alguém precisa ouvir o coração e dizer: parou).
O universo masculino teve muita representatividade em longas excepcionais como O farol em que, sob uma fotografia arrebatadora, Willem Dafoe e Robert Pattinson embasam um duelo de egos numa ilha deserta. Vencedor do Urso de Ouro (Berlim), o longa Synonymes se debruçou sobre a trama de israelense esforçado em se desvencilhar de tradições hebraicas. Com primor técnico, o diretor Sam Mendes propôs, em 2020, o longa 1917, em torno de soldados britânicos inseridos na Primeira Guerra. O trauma do Vietnã saltou aos olhos no aclamado filme de Spike Lee Destacamento blood, título que não pode estrear nos cinemas, mas com espaço assegurado na plataforma do streaming.
No palco de batalha revelado pelo cinema, ao longo do ano houve espaço para Alejandro Landes desfilar horrores tirânicos, no filme colombiano pré-candidato ao Oscar Monos — Entre o céu e o inferno, que revela uma comunidade de guerrilha em formação, com direito a poliamor e muita agressividade. No ramo de temas militares, Roman Polanski assinou O oficial e o espião, filme sóbrio e acadêmico sobre uma discriminação real. Noutra vertente, Jojo Rabbit se afirmou no hilário dia a dia de um menino desorientado e partidário de ideais nazistas.
Festivais
Num ano em que o circuito dos festivais não contou com a tradicional edição de Cannes e foi confinado ao segmento do streaming (a exceção foi Veneza, que promoveu involuntário desfile de máscaras, na batalha contra o coronavírus), os diretores brasileiros Caetano Gotardo e Marco Dutra tiveram por privilégio exibir, em Berlim (pré-pandemia) Todos os mortos, longa que trata das raízes do racismo estrutural no país. O tema ainda foi abordado em M8 — Quando a morte socorre a vida (assinado por Jeferson De) e em Fim de festa, longa de Hilton Lacerda sobre as comemorações desbotadas de festas num Brasil crivado de cisão racial, social e política.
Desencantos com governo se apresentaram em dois títulos documentais: Partida (de Caco Ciocler) e Entre nós talvez estejam multidões, exibido há duas semanas no 53º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Emblemas da capital deram caldo ainda para algumas belas experiências no cinema. Foi o caso da última (e premiada) performance do ator Andrade Junior, em King Kong en Asunción; da fotogenia de Brasília no longa Uma máquina para habitar, e ainda da figura da trans Maria Luiza, presente em filme de Marcelo Díaz.
* Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira