A arte não limita a vida, nem a vida limita a arte

Múltiplos, os criadores da cidade buscam diversificar a rotina e complementar a renda num país pouco atento ao destino de artistas

Ricardo Daehn
postado em 05/01/2021 21:34
 (crédito: Aline Spezia/Divulgação)
(crédito: Aline Spezia/Divulgação)

Há momentos em que as jornadas de artistas se mostram duplas: atores, na escalação ou montagens de teatro, fazem a chamada leitura de mesa; pintores, antes das exposições, preparam os quadros e dançarinos ensaiam, exaustivamente, os passos das coreografias a serem mostradas. Mas, para além do previsível, a jornada de alguns artistas se mostra tripla: é quando entram em cena aqueles que levam vidas paralelas às das artes. Confira!


Palcos, microfone e grafismo

Numa curiosa administração de talentos, o cantor e compositor brasiliense Tiago Miollo surpreende, com o lançamento do EP Carga viva. Aos 41 anos, sempre relacionado com criação, Tiago trabalha na TV Câmara e ainda responde por computação gráfica em vídeos realizados para anúncios e afins. Mas, ainda que, aos 13 anos, tenha se dedicado ao violão, minimiza os recursos musicais, lembrando que teve a sorte de “contar com bons instrumentistas”.

Tiago Miollo, que despontou para as artes ao lado de figuras como Juliana Drummond, Eduardo Moraes, Abaetê Queiroz, Alex Souza e Rosanna Viegas, tomou o palco de assalto, na montagem de curso da Oficina de Menestréis, com Enquanto rola a noite, enquanto rola o som, e ficou mais conhecido pela premiada projeção de autor e diretor do monólogo Herculano demasiado urbano (em 2015).

Nos meios digitais, convulsivos durante a pandemia, o animador de conteúdo visual nota brecha para uma “aproximação” entre o artista e o técnico. Enquanto resolve a “dívida acumulada” de se afirmar como cantor e compositor de obras como Ondas e Acordado, Miollo segue no embalo da MPB criada com reflexões do cotidiano. “Antes, havia lugar e hora para as coisas e os momentos diferentes. Na quarentena, personagens sociais convivem simultaneamente. É tempo de se conhecer melhor, de se organizar mais internamente”, opina.


Campo criativo

Não foi pela pandemia que o ator Murilo Grossi foi desviado de função, afastado da carreira artística. “Foi com o golpe contra a presidente Dilma Rousseff”, demarca ele que, sempre associado a campanhas institucionais mobilizadas por questões sociais, perdeu mercado de trabalho. Ator de clássicos como O olho da fechadura (como “aluno tardio” da UnB, em meados dos anos de 1980) e obras de cinema como Batismo de sangue, “um filme sensível e cruel, atual nos elementos da ditadura que pairam até hoje”, há dois anos Grossi foi buscar na experiência do pai José Gerardo como pecuarista e advogado o estímulo para seguir. Murilo teve como propulsores personalidades do teatro como Guilherme Reis e Hugo Rodas, nos anos 1980, e estrelou com A revolução dos bichos, dando sequência às artes desenvolvidas no Colégio Marista. Agora ele comanda, ao lado de um irmão, 3/5 da fazenda São Joaquim (em Brazlândia). Lá, investe na recria de gado para corte. “Eu amo a atividade. Cresci na roça, minhas raízes são mais lá do que na vida urbana. Acho que, do campo, veio o amor pelo país e pela natureza. Isso ainda alimenta a corrente de dignidade e respeito pelos outros”, analisa.


Didática e lastro cênico

O retorno presencial às aulas de grande parte do efetivo dos alunos das escolas Canarinho — seguindo todos os protocolos e com videoaulas mantidas – tem mexido com o cotidiano da atriz e escritora Solange Cianni. Isso porque, aos 63 anos, ela ainda se desdobra na atividade de diretora pedagógica do colégio cujas bases se inclinam para as artes. “Nossos fundamentos tocam a liberdade de expressão e as experimentações”, sintetiza.

Na família de educadores, que chega à terceira geração, o prestígio é grande para a escritora que teve o quinto livro (Aída colorida) publicado. Protagonizado por uma menina, “com a força feminina”, o livro revela a latente autenticidade de Aída. Com performances esporádicas no teatro, Solange esteve em Apra bilis (de Hugo Rodas) e no espetáculo Poeira. Saltam as origens da integrante do primeiro movimento teatral da cidade. Ex-bailarina de dança contemporânea, a carioca esteve num dos primeiros passos do Teatro Dulcina de Moraes, em 1980. Com direção de Bibi Ferreira – “uma mulher primorosa e admirável” – e de Gianni Rato, integrou, com Dimer Monteiro, o espetáculo Gota d´água. “Fiquei passada”, relembra.


Irrefreável

Com um livro (Brasília — Uma arquitetura familiar) que traçou paralelo com momentos históricos vivenciados por ela e pelo pai Márcio, fotógrafo amador, Débora Amorim traz no currículo as exposições O corpo em si e Gesto natural, reunindo imagens de partos. Tudo veio antecedido pelas aulas de alongamento ministradas depois do curso de educação física. Incapaz de aceitar apenas um ramo profissional, atualmente, aos 46 anos, a brasiliense se aventura no aprendizado da arte da cerâmica.

Bem antes de esmaltar e queimar peças de cerâmica, entretanto, a artista que teve por hobby atuar nos campos da dança propiciados por Lúcia Toller e pela escola Royal, além da companhia Anti Status Quo, desbravou a experiência da fotografia. “Fui fotojornalista da área cultural, cobrindo teatro, dança e shows, entre 2000 e 2010, depois de um curso na Austrália”, explica. O trabalho deixado para trás derivou de uma sessão de fotos junto ao corpo de baile do Theatro Municipal do Rio.

Na intensa carreira de Débora, pesou uma experiência pessoal, uma vez que julgou não ter precisado passar por cesariana. E lá foi ela se reinventar: vieram os cursos de acupuntura chinesa, de doula e de parteira. Com participação em 130 partos, ela resume: “é o momento mais íntimo e intenso de um casal, e não tem lugar melhor para parir do que em casa”.


De um campo para outro

O êxito de conciliar carreiras paralelas e complementares ganha um exemplo muito claro quando se analisa o dia a dia de Fernando Toledo, produtor cultural que se encantou com o plantio de alimentos orgânicos. Morador de uma casa no Condomínio Privê Morada Sul (Jardim Botânico), Toledo teve acesso aos conhecimentos para a elaboração de uma horta e do plantio de cogumelos, em particular, justamente, por causa da profissão artística.

“No audiovisual, busco lugares para o desenvolvimento das cenas idealizadas pelos diretores”, explica o mineiro de 51 anos. Há quatro anos, numa das investidas para locações de institucionais para a capital, ele afunilou o interesse pelos orgânicos. Seguiram-se meandros para a certificação de produtos, cursos e experiências em locais de excelência, como o laboratório na sede da Embrapa. Radicado na capital desde 1999, Fernando integrou produções de teatro, de shows e de exposições. Isso bem antes da lida com agricultura, fazenda de gado leiteiro e plantio de banana, mamão e verduras. “Atualmente, isso segura minhas despesas, neste momento de pandemia”, observa.

Foi o diretor de arte Waldy Lopez quem o recomendou para a função de produtor de locações; isso à época da produção do longa Insolação, de Felipe Hirsch e Daniela Thomaz. Seguiram-se as adesões a equipes de longas como Somos tão jovens e Uma loucura de mulher, além dos inéditos Pureza e Capitão Astúcia.


Talento sobreposto

Trabalhando em frente ao computador como programador visual do STJ, Leonel Laterza assume que a música flui, como ouvinte. Mas, ele, que por três anos trabalhou como arte-finalista, com litros de nanquim e direito à prancheta, tem contato estendido com as notas musicais. Laterza, vindo de Uberaba para Brasília, nos anos de 1970, se viu cantor de jazz e MPB, numa família musical. Aos 55 anos, ele relembra: “Minha mãe tocava violão no pé da nossa cama, enquanto Mozart era meu pai, um vendedor autônomo. Lá em casa, houve muita valorização das artes e da poesia”. Nos bares da capital, “uma das escolas foi a noite”, conta Laterza, que frequentou a Escola de Música de Brasília.

Escolado em saraus, serestas e na rica discoteca dos pais, ele teve ápices de, na Sala Villa-Lobos, há 12 anos, ter aberto show de Rosa Passos. Designer de capas de CDs e de livros, além de responsável por diagramações e cartazes de divulgação, o músico, por exemplo, assumiu os recursos visuais do CD de Rosa Passos Luxo só. Sozinho, aliás, segue em casa, metido com recursos tecnológicos (filmagens e gravações) e teletrabalho. Com o primeiro cachê pago em 1990, Leonel, celebrou os 30 anos de carreira em outubro. “A música é companheira”, destaca ele, com shows feitos no circuito Sesc, no Teatro dos Bancários, e com dois CDs e um DVD já gravados.

 

 

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