LITERATURA

Nélida Piñon: 'Um país se torna nação quando tem uma dose fantástica de sonhos e utopias'

Depois de passar 14 anos sem publicar um romance, a acadêmica Nélida Piñon retorna com uma saga épica no Portugal do século 19. Confira entrevista com a autora de 'Um dia chegarei a Sagres'

Nahima Maciel
postado em 10/01/2021 06:00
 (crédito: Simone Marinho/Divulgação)
(crédito: Simone Marinho/Divulgação)

Nélida Piñon, 83 anos, sempre teve uma queda pela história de Portugal, especialmente quando se trata do período das grandes navegações. No entanto, foi num século posterior que ela decidiu localizar Um dia chegarei a Sagres, livro que a integrante da Academia Brasileira de Letras (ABL) acaba de lançar após 14 anos sem escrever um romance. Na saga narrada por Nélida, Mateus é um homem pobre, filho bastardo criado pelo avô que vai em busca das origens do infante dom Henrique e se revela um apaixonado pelas figuras épicas de Portugal no século 15.

Um dia chegarei a Sagres se passa no século 19 e, para encontrar a história e mergulhar na narrativa, a autora foi morar em Portugal durante um ano. “Eu tenho uma sensibilidade muito apurada, entendo a analogia das coisas, a analogia enriquece a criação literária. Fui em busca das paisagens, dos resíduos de uma língua que eu precisava ouvir, que vinha do século 15, a língua de Camões, que foi se implantando no mundo e que ele, Mateus, vai amar no século 19”, conta Nélida. “Visitei as aldeias e tudo que enriquecia minha imaginação. O imaginário é uma composição de todos os saberes. Isso foi extraordinário, eu tinha a impressão que estava convivendo com o infante, que ele me ditava regras sobre seus poderes, da expansão do império.”

Foram 14 anos sem um romance, mas Nélida não deixou de publicar durante esse tempo. Escreveu três livros de memórias — O livro das horas, Una furtiva lágrima e Coração andarilho — e um de contos — A camisa do marido. Um dia chegarei a Sagres só não saiu antes por duas razões: Gravetinho o cãozinho da autora, não aguentaria a viagem a Portugal e ela estava comprometida com afazeres na ABL.

Quando Gravetinho morreu, em 2017, a escritora se organizou para uma temporada no país de Camões. “Eu me preparei para passar um ano em Portugal. Sempre fui uma apaixonada pelos séculos, sempre li muita história, então intensifiquei meus estudos entre os séculos 15 e 19, porque o romance ia se passar no 19 mas tinha uma simbologia intensa no 15, por causa do infante e dos navegantes”, conta. Enquanto viaja ao encontro do passado, Mateus revela um presente particular: o Portugal rico das grandes descobertas e navegações agora parecia empobrecido e triste, com aldeias famintas e um atraso em relação aos avanços do resto da Europa. Mas Mateus se dá conta de que, apesar de parecer um miserável, é herdeiro de um país povoado por figuras míticas, como o infante dom Henrique, quinto filho de dom João I, conhecido como o navegador, responsável por expedições que descobriram e povoaram ilhas do Atlântico como Madeira e Açores.

É atrás dessa ideia de um país épico e utópico que o personagem se aventura com a mesma devoção destinada a Deus e aos animais, que ele tanto ama. “Mateus nasceu na margem do rio Minho, entre Portugal e a Galícia, numa daquelas aldeias pobre, miseráveis, nas quais a lavoura é penosa, a terra é seca. Ele pensa que está condenado à miséria, que não tem salvação para os camponeses portugueses. E o menino vai se dando conta de que não é miserável porque nasceu numa terra que tinha heróis, que viveu a odisseia da navegação, então ele começa a tecer uma história dentro dele como se revivesse o infante. A história toda é em torno disso”, avisa Nélida.

Serviço

Um dia chegarei a Sagres
De Nélida Piñon. Record, 510 páginas. R$ 62,90

ENTREVISTA — Nélida Piñon

Por que partir do fascínio de um personagem por um navegador que viveu quatro séculos antes?

Eu sabia que meu livro tinha que mostrar a nova imaginação que surge no mundo, um novo conceito de imaginação que surge no mundo a partir do infante. Mateus vai ser o porta-voz de tudo isso, narrador em primeira pessoa. É um desafio muito grande a primeira pessoa, porque você está sozinho no mundo, opera sem rede de segurança, à deriva, é só você confrontado com o mundo. A terceira pessoa tem subterfúgios, a primeira não tem salvação. Eu precisava dessa voz frágil e poderosa da primeira pessoa. Mas quis que Mateus fosse pobre, porque gosto muito dos pobres da península ibérica, porque os conheço muito, assimilei o modo de ser deles entre os 10 e 12 anos, quando vivi na Galícia, no campo. Guardei todos esses detalhes da psique do lavrador na minha infância, nunca esqueci.

Por que o século 19?

Acho o século 19 português muito interessante porque ainda tem monarquia, o poder dos monarcas, a nobreza tinha prestígio e várias coisas politicamente muito interessantes aconteceram. Acho um século muito original na Europa, e em Portugal era menos. O sistema industrial se expande, mas em Portugal tudo chega com mais atraso. Era um período de grandes mudanças políticas e progressistas, mas também de grande pobreza dos povos miseráveis. Esses contrastes me atraíram muito para a ficção. O espírito do livro não é renascentista, é o espírito de um livro que tem uma visão mais que utópica, épica da humanidade.

Que tipo de utopia Mateus representa? Quem seria ele hoje?

Não aceito o conceito de que a utopia é manejada pelos poderosos, pelos grandes sonhadores, pelos intelectuais. Acredito que cada um tem direito ao sonho modesto, pobre, que é uma utopia pessoal. Sempre achei que a imigração é um movimento utópico. Qualquer movimento político engendrado por um pequeno grupo tem o gesto da utopia. Mateus, ao acreditar na grandeza de Portugal e se devotar, é um sonho poderoso no qual ele quis acreditar até o fim da vida. Ele chega a Sagres, sai de Sagres, mas Sagres não sai dele. Acredito num sonho quase sem formato, porque o sonho não pode ser apropriado pelas ideologias, pelos partidos, pelo poder político. O que vejo no sonho é aquele indivíduo, privado, que, somado a outros, nos fazem crer na grande utopia coletiva de um país e de uma nação. Um país deixa de ser país e se torna nação quando tem uma dose fantástica de sonhos e utopias, quando cresce e é capaz de fornecer aos seus habitantes, ao seu povo, os elementos que permitem sonhar. Um país não é um aglomerado.

Como a senhora vê o Brasil hoje, a partir dessa perspectiva de nação?

O Brasil corre o risco hoje de ser um aglomerado. E não é de hoje, nunca deixamos de ser um aglomerado. Qual a percentagem que não tem saneamento básico? Um país que tem essa ausência de saneamento básico explica a alma nacional. Não tem banheiro, vaso sanitário, que dá uma dignidade, que permite sonhar, desenvolver suas utopias. É uma vergonha. Você não pode ter vergonha do seu corpo. E você tem vergonha do seu corpo quando não tem um vaso sanitário. O Brasil é um país abandonado à sua miséria.

Deus é importante para Mateus, assim como os animais. E para você?

Os animais, cada dia mais, ocupam um espaço poderoso na minha vida. Porque o tratamento que lhes é dado revela a precariedade da moral humana. Nós somos cruéis e carrascos em relação aos animais. Nós praticamente assassinamos os animais a cada dia. Deus é uma resposta individual, cada qual estabelece uma aliança com deus. Sou uma mulher de fé, mas nunca aceitei Deus como justiceiro, como alguém que subordinou minha consciência à vontade dele. Eu penso segundo meus propósitos cívicos e morais. Cada dia durmo buscando onde está o epicentro do âmago da minha consciência.

Como a senhora está encarando a pandemia?

Estou na minha casa, só saí três vezes desde 12 de março, por razões profissionais. Mas sou uma mulher muito serena. Fui, ao longo da minha vida, uma mulher que sempre entendeu a história humana, sempre soube que a humanidade esteve sujeita a percalços terríveis e nos tocou esse. Mas o pobre vive essa tragédia desde sempre. Nós, que sempre tivemos o pão, é que estamos perplexos. É um momento de refletir sobre a grande solidariedade humana e refletir sobre mudanças necessárias.

A senhora tem esperança?

Esperança é uma espécie de hábito, é preciso ter esperança para seguir arfando. O arfar humano é impulsionado por esse gesto de sobrevivência. Temos que ter a esperança de que vamos dormir, comer, falar, pensar, senão é a morte.

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