A busca da sofisticação no trabalho musical de Antônio Carlos Bigonha, mineiro radicado há 40 anos em Brasília, remete ao universo sonoro, que ele sempre frequentou, no qual os expoentes são Heitor Villa-Lobos, Egberto Gismonti, Michel Legrand, Henri Mancinni, Enio Morriconi, mas especialmente Tom Jobim. Não por acaso, o pianista e compositor atribui ao Maestro Soberano a marca de Saudades de amanhã, o quarto título de sua discografia, que acaba de lançar nas plataformas digitais.
O álbum, concebido durante a quarentena determinada pela pandemia de covid-19, traz nove faixas instrumentais. Seis são totalmente autorais, entre as quais Paisagem da memória, Sem dizer adeus e a que dá título ao trabalho. Com Dori Caymmi, produtor do disco, ele compôs Prólogo e Epílogo; enquanto Perto do Tom foi feita em parceria com Clodo Ferreira. O pianista ressalta que, no Saudades de amanhã, procurou expressar, musicalmente, sem palavras, “os sentimentos contraditórios deste período de pandemia”.
Com ele, aqui na capital, e Dori, que mora em Petrópolis (RJ), em isolamento social, ideias foram trocadas por telefone e e-mail, a respeito das canções e dos arranjos. Nas gravações, o pianista foi acompanhado por Jorge Helder (contrabaixo acústico) e Jurim Moreira (bateria), residentes no Rio, e pela Orquestra de Cordas de São Petersburgo, na Rússia — cada um em sua cidade, graças aos modernos recursos tecnológicos.
Bigonha havia lançado anteriormente Azulejando, o disco de estreia; Urubupeba, que foi finalista do 23º Festival da Música Brasileira (categoria arranjo); e Anathema, de 2018, no formato de piano trio. O instrumentista costuma fazer shows para lançamentos dos seus trabalhos, mas em decorrência da pandemia, vai aguardar o momento propício para subir ao palco e mostrar o que registrou no Saudades de amanhã. Em entrevista ao Correio, detalhou o processo de feitura do álbum.
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Antídoto em música
» Paulo Pestana
A vida, escreveu o poeta, necessita de pausas. Neste momento, em que o mundo pede delicadeza, inteligência e beleza, precisa muito. E aí se encaixa Saudades de amanhã, quarto disco de Antônio Carlos Bigonha, que é praticamente uma parceria com Dori Caymmi, autor dos arranjos e coautor em duas das nove canções selecionadas. A gravação parece um artefato alienígena no meio da boçalidade que a música brasileira se transformou nos últimos tempos e recupera uma linguagem que se dava como perdida, iniciada com Villa-Lobos. A árvore genealógica continuaria com Gnatali, Mignoni, Jobim, Gismonti e, de alguma maneira, foi dar nos Barões da Pisadinha, Sonza, Vittar... Pois, Bigonha é de uma elegância rara. Com uma falsa simplicidade, construiu temas em que o mais importante é o belo
em estado bruto como manifestação maior de arte. Usando um quarteto como base, as canções são vestidas com as cordas da Orquestra de São Petersburgo. Algumas têm realce imediato, caso de Perto do Tom e Lullaby para meus pais, mas o disco todo tem a fluidez das canções bem construídas.
Nesses tempos em que há tanto a dizer, música sem palavras — e com a qualidade dessas gravações — é o antídoto perfeito para essa barafunda de emoções.
» Entrevista / Antônio Carlos Bigonha
Quando chega ao quarto disco, que avaliação faz de sua trajetória musical?
Comecei a divulgar minhas composições há quase 20 anos, em 21 de abril de 2001, no show Saudades de Brasília que produzi na Sala Martins Pena do Teatro Nacional Cláudio Santoro. Vejo o Saudades de amanhã como a consolidação de um processo de amadurecimento pessoal e musical.
Saudades de amanhã dá continuidade ao seu trabalho ou propõe algo mais inovador?
Este trabalho é diferente dos anteriores por enfatizar a estética da Bossa Nova, com destaque para o naipe de cordas e um piano econômico, cumprindo uma função orquestral. Ele é a continuidade do Azulejando, Urubupeba e Anathema, porque também aposta em uma música instrumental com formas mais complexas, sem ênfase para a improvisação, mas mantendo a atmosfera harmônica e rítmica do jazz e da MPB.
O título do álbum remete ao tempo que vivemos, sob os mais diferentes aspectos?
Sem dúvida. Refleti muito para batizar este samba, que também dá nome ao álbum. E penso que Saudades de amanhã reflete esse sentimento contraditório da pandemia. O isolamento social paralisou nossos projetos, nosso cotidiano e colocou no banho-maria as expectativas de futuro. A gente está com saudade de sonhar, de resgatar os projetos que ficaram pelo caminho e das pessoas queridas que partiram sem dizer adeus.
Há vários anos, amigo de Dori Caymmi — que já havia participado de outros discos seus — por que só agora vieram a se tornar parceiros?
Eu sou mineiro e, apesar de já estar há 40 anos em Brasília, conservo o temperamento das pessoas de Minas. De modo que sempre fui muito cauteloso neste assunto com ele, para não forçar a amizade, não ser um bicão, um aproveitador, como nós dizemos no meio artístico. O Dori é, sem exagero, um dos maiores compositores da música brasileira de todos os tempos. Filho de mãe mineira, a cantora Stella Maris, ele também é, à moda mineira, bem reservado. De modo que nós ficamos cerimoniosos sobre compor juntos, apesar de termos realizado outros projetos conjuntamente, como o Urubupeba. Quando os arranjos do novo álbum já estavam todos prontos, eu senti falta de um tema que abrisse o CD e que atasse o repertório. Eu propus uma ideia ao Dori que ele complementou com as ideias dele. E assim nasceu nossa primeira parceria, Prólogo, que abre o Saudades de amanhã. E reaparece no final, sob o nome de Epílogo. Espero que esta seja uma de muitas outras canções conjuntas que virão.
Vem de quando a admiração pelo legado de Tom Jobim, a quem tem como um dos seus influenciadores?
Eu estudei piano clássico e desde cedo me interessei pelo samba, pela música do meu país. E a música do Tom Jobim é uma manifestação genuína e intensa dessa mistura, bem tropical, entre as estruturas da música erudita e da música popular. A Bossa Nova, da qual ele é um dos criadores, ao lado de João Gilberto, reúne elementos harmônicos do impressionismo francês, acordes de jazz e ritmos tipicamente africanos.
Os temas deste novo álbum foram compostos em que período e como os concebeu?
O tema principal, Saudades de amanhã, é releitura de um samba que compus para o show Saudades de Brasília, no qual me lancei como compositor em 21 de abril de 2001. Naquela época eu falava da importância de preservar a cidade, de valorizar o tombamento e não chorar o leite derramado depois da degradação urbana. Com a pandemia, este tema me meio novamente aos ouvidos e fizemos um novo arranjo que ficou tão original que resolvi rebatizá-lo. Perto do Tom eu compus em parceria com Clodo Ferreira, no ano passado, em homenagem ao Tom Jobim, e é um samba. Sem dizer adeus foi composta em memória do querido amigo Alencar 7 Cordas; e Lullaby para meus pais. Traduz bem a estética jobiniana deste álbum.
Como e por que quis ter Clodo Ferreira como parceiro?
Conheci pessoalmente o Clodo na casa do jornalista Giovani Sousa, nosso amigo comum, em 2010, e, desde então, ficamos muito próximos. E nossas esposas, Márcia e Elô, se entenderam muito bem, o que facilitou muito. Ele escreveu uma letra muito bonita para a canção Elroy, do álbum Urubupeba, e depois compusemos Que ironia, que incluí no álbum Anathema, na versão instrumental. É uma das faixas mais baixadas nas plataformas digitais. Quando mostrei o tema Perto do Tom ao Dori, ele rapidamente entendeu o sentido que eu queria atribuir ao novo álbum e este samba ficou como referência estética para todos os arranjos. Ser parceiro do Clodo é uma grande honra, pois sempre fui fã do antológico trio Clodo, Climério e Clésio e, claro, por ele ser um compositor consagrado, gravado pelas maiores vozes da MPB, como Nara Leão, Simone, Milton Nascimento, Ângela Maria, Dominguinhos, só para exemplificar.
Músicos como Jorge Helder e Jurim Moreira, além da Orquestra de Cordas de São Petersburgo trouxeram que tipo de acréscimo nas gravações?
O Jorge Helder e o Jurim Moreira são dois baluartes da música brasileira. Eles integram as bandas de artistas como Nana Caymmi, Chico Buarque, Maria Bethânia, Edu Lobo, Francis Hime, Edu Lobo, o próprio Dori, entre muitos outros, e tem a perfeita noção estética da música brasileira em geral e da Bossa Nova. Nós gravamos o Anathema, em formato trio, e vínhamos divulgado este trabalho Brasil afora, até que fomos paralisados pela pandemia. Aqui, eles foram cruciais para alcançarmos a atmosfera jobiniana que reascende dos arranjos e orquestrações elaborados pelo Dori. E a Orquestra de Cordas de São Petersburgo mostrou como o Brasil e a Rússia podem estar tão próximos. Como eles tocam bem a música brasileira!
Qual é sua análise sobre a situação do país atualmente, nas áreas política, econômica, social e cultural?
Sou um grande admirador do pensamento de Darcy Ribeiro, para quem somos uma nação que se constrói como uma nova civilização, mestiça e tropical. Acredito no nosso país e nosso povo. Neste momento, estamos taciturnos, como diria Drummond, mas nutrimos grandes esperanças. E sinto saudade do tempo em que tínhamos um projeto nacional, um amanhã em que não éramos a periferia dos países ricos, um Brasil ocupado primeiramente com os interesses dos brasileiros. Procurei expressar, sem palavras, esta reflexão neste meu 4º álbum de música instrumental.
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