Foi uma sensação de déjà vu que levou o pesquisador Adalberto Müller até Emily Dickinson. Em 2013, enquanto passava um ano na Universidade de Yale para pesquisar a obra do cineasta Orson Welles, Müller foi visitar a casa na qual morou uma das poetas mais misteriosas e conhecidas da literatura americana. O sentimento de familiaridade com o universo de Dickinson se instalou, e o pesquisador começou a traduzir alguns poemas. Dois anos depois, apresentava à Emily Dickinson Society um projeto para traduzir a obra completa da autora. O resultado está num primeiro volume bilíngue de 884 páginas publicado pela Editora UnB em parceria com a Editora Unicamp.
Dickinson, segundo Müller, seria a única autora que nunca publicou um livro e, por isso, editar a obra completa foi um desafio. Pouco se sabe sobre como a poeta gostaria que os versos fossem apresentados e, por isso, foi preciso optar por uma organização particular. Dickinson reunia seus escritos em fascículos. Morta em maio de 1886, ela chegou a publicar 10 poemas em jornais e revistas, mas nunca foi além dos periódicos. “É como se toda a obra dela fosse um grande manuscrito à espera de um editor. Ao longo de mais de 100 anos, várias edições foram propostas e todas elas rasgavam os manuscritos da Emily Dickinson”, explica Müller.
Foi graças à pesquisa de Cristianne Miller, que assina o prefácio de Poesia Completa Volume I: Os fascículos, que Müller decidiu ser o mais fiel possível aos originais da poeta. “O que a Cristianne Miller fez foi recompor os manuscritos na ordem que ela tinha deixado, porque não se sabe como ela editaria isso. Aí que entram os fascículos. Muita gente defende que ela fazia uma pré-edição dos livros. Ela queria muito ser publicada e mostrou os poemas para as grandes editoras. Não aconteceu, porque ela era ilegível para o mundo contemporâneo dela. As pessoas não só não entendiam como não aceitavam”, conta Müller, que é ex-professor da Universidade de Brasília (UnB) e, hoje, dá aulas na Universidade Federal Fluminense (UFF), no Rio de Janeiro.
Para o tradutor, o maior desafio da obra de Dickinson está na compreensão dos versos. A escrita radical, a experimentação, o ritmo, as elipses e uma certa instabilidade podem deixar os leitores com o pé atrás embora, na maioria das vezes, esses sejam também os grandes atrativos da obra da americana. “Até hoje, leio os poemas e não tenho certeza do que estou lendo. Depois de ter traduzido tudo, não tenho certeza. Ela cria uma zona de indeterminação semântica que tem a ver com o modo como ela vai criando elipses, esses vazios de significação que geram uma espécie de um abismo”, explica Müller. “E me interessou muito pensar em como posso traduzir esses vazios, como fazer uma tradução que não seja uma explicação do poema, mas que também crie esses vazios.”
Brasil
Entre os poemas traduzidos estão quatro sobre o Brasil. Curiosamente, o país apareceu algumas vezes na obra da poeta, sempre ligado à ideia de paraíso. Todos foram traduzidos e publicados em compilações, mas, na maioria das vezes, apareciam separados. “Já existia uma certa produção crítica que associava o Brasil a uma ideia de paraíso na obra da Emily Dickinson”, avisa Müller. “O que fiz foi conectar esses poemas: tentei mostrar que existe uma certa ordem e a ideia de que o Brasil aparece sempre como uma coisa inalcançável, inatingível.”
Emily Dickinson nasceu Amherst (Massachussets), em 1830, num tempo em que mulheres não tinham a liberdade para escrever. Contemporânea das irmãs Brontë, cujos romances entraram para o cânone da literatura ocidental, fazia parte de um grupo de mulheres que desafiava a convenção social. Ao contrário das Brontë, que chegaram a publicar seus romances em vida e com pseudônimos masculinos, Dickinson não conseguiu ver seus livros publicados, mas se tornou um ícone da poesia americana.
Dona de uma ironia muito moderna, que nada tem de risível e aposta na insegurança, no não dito, nos silêncios, ela integra uma linhagem de poetas que se sustentam na economia. Os versos curtos, com poemas de duas ou quatro linhas, intrigam e plantam interrogações. “Emily Dickinson é como uma jardineira, ela vai cortar as coisas, vai criar um jardim que vai chegar ao bonsai, com poemas de um verso, dois versos”, explica Adalberto Müller, que já tem o segundo volume da obra completa pronto para ser lançado.
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Lançamentos sedutores
Autor de oito romances e ganhador dos prêmios Saramago e Oceanos, o português José Luis Peixoto está de volta com Regresso a casa, um pequeno livro de poesias cujos versos carregam conexão com viagens e outros escritos do autor. Há um capítulo dedicado à Coreia do Norte, outro para a China, um para a Tailândia e ainda um para Galveias. Os tradutores também têm uma parte reservada, assim como a pandemia e o isolamento social dela decorrente. Em Quarentena, Peixoto reflete sobre as novas formas de viver e se relacionar, sobre medos, fronteiras e a própria poesia.
Recém-lançada pela Todavia, a coletânea Meu anjo da guarda tem medo do escuro é uma boa compilação para conhecer a obra do poeta sérvio Charles Simic. Nascido em Belgrado e radicado nos Estados Unidos, Simic é considerado expoente importante da poesia minimalista americana e costuma ser celebrado pela crítica por conta da capacidade de construir imagens por meio dos versos. Nos poemas selecionados por Ricardo Rizzo para essa antologia está uma variedade de temas que vai do cotidiano à guerra, da existência ao espaço urbano.
Meu anjo da guarda tem medo do escuro
De Charles Simic. Tradução: Ricardo Rizzo. Todavia,
108 páginas. R$ 59,90
Regresso a casa – Poemas
De José Luis Peixoto. Dublinense, 112 páginas. R$ 32
Poesia completa — Emily Dickinson
Volume I: Os fascículos
De Emily Dickinson. Tradução: Adalberto Müller. Editora UnB e Editora Unicamp, 888 páginas. R$ 160