“Eu sou o samba, sou natural daqui do Rio de Janeiro/Sou eu quem levo a alegria para milhões de corações brasileiros”. Este é um verso de A voz do morro, clássico da música popular brasileira, composto em 1955, que tem a assinatura de José Flores de Jesus, o Zé Kéti. Gravado por intérpretes das mais diversas gerações — de Jorge Goulart, cantor da era de ouro do rádio, a Elis Regina, no histórico LP Dois na Bossa, que dividiu com Jair Rodrigues — faz parte do repertório de sambistas contemporâneos.
Zé Kéti — 100 Anos da Voz do Morro dá nome ao projeto com o qual será celebrado o centenário do cantor e compositor carioca, no teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Brasília. Na série de quatro shows, que estreará hoje, às 19h, e prosseguirá até o dia 3 de março (sempre às quartas-feiras), destacados sambistas visitarão o legado do cantor e compositor, interpretando sambas como Acender a vela, Diz que fui por aí, Leviana, Malvadeza Durão, Nega Dina, Opinião e a marcha-rancho Máscara negra. Antes das primeiras apresentações, haverá palestras focalizando temáticas atuais, tendo como referência composições do homenageado.
Criadora e coordenadora do projeto, Stella Lima conta por que quis homenagear o sambista, com 100 Anos da Voz do Morro. “Zé Kéti foi um artista múltiplo, que se destacou como cantor, compositor e ator. As músicas que compôs são crônicas do seu tempo e muitas delas se mantêm atualíssimas. Ele brilhou na noite carioca, ao lado de parceiros no Zicartola, bar e restaurante de Cartola e Dona Zica, no centro do Rio de Janeiro; e também atuando no espetáculo Opinião. Chamava a atenção também por seu amor à Portela e sua relação com o cinema nacional. Todos estes aspectos de sua trajetória serão lembrados nos shows por grandes artistas contemporâneos”.
Envergadura
João Cavalcanti, fundador e ex-integrante do grupo Casuarina, e Fabiana Cozza farão Eu sou o samba, o show que abre o projeto. Antes, em palestra, eles abordarão o tema Em tempo — Machismo não é questão de opinião, falando de misoginia e da mudança de comportamento da sociedade nas últimas décadas. Ao referir-se a Zé Kéti, João ressalta: “Não deveria ser preciso sublinhar a importância e a envergadura artística de Zé Kéti. Mas, infelizmente, num país tão negligente com seus grandes artistas e pensadores, isso se torna necessário. Zé Kéti foi um dos mais ferinos e precisos cronistas que o Brasil já concebeu, contando em forma de canção a realidade de um recorte silenciado do país, fazendo de si a própria voz do morro”.
O cantor acrescenta: “Mas, para além disso, essa voz de Zé Kéti infiltrou-se por um Brasil até então alheio à realidade da favela. O magnetismo de sua personalidade o levou a ser inspiração do alvorecer do cinema novo e personagem de um dos espetáculos políticos mais importantes dos primeiros anos da ditadura, o Opinião. Sua obra é uma obra política. Isso está presente no repertório do show e no bate-papo, que apresentaremos, abrindo o projeto que o homenageia”.
Zé Kéti e o cinema é o tema do show e da palestra, que deve reunir o cantor e compositor Zé Renato e o pianista Cristóvão Bastos. Os dois levarão ao público uma das facetas menos conhecidas do compositor, autor de trilhas sonoras para filmes de Nelson Pereira dos Santos e Cacá Diegues. Um dos fundadores do grupo vocal-instrumental Boca Livre e em carreira solo, Zé Renato é reverenciado como um intérprete especialíssimo. Em 45 anos de carreira, lançou vários discos, e um deles, Natural do Rio Janeiro, homenageou Zé Kéti. Pianista, compositor e arranjador, parceiro de Chico Buarque, Paulinho da Viola e Aldir Blanc, Cristóvão Bastos possui brilhante trajetória de 60 anos na MPB e mais de 20 discos lançados. A data do evento (previsto, inicialmente, para o dia 17) ainda não foi confirmada pela produção — Zé Renato foi diagnosticado com a covid-19 e sua apresentação deve ficar para o final do projeto.
Diz que fui por aí é título do show do dia 24, com o Sururu na Roda e Moacyr Luz traz músicas e lembranças das andanças de Zé Kéti por lugares da noite carioca, especialmente o Zicartola, onde se apresentava e encontrava amigos. De alguns deles, como Paulinho da Viola, Elton Medeiros e Monarco, tornou-se parceiro. O Sururu, um dos grupos que contribuiu para a revitalização do bairro boêmio da Lapa, chega ao CCBB, conta com Fabiano Salek e Sílvio Carvalho, remanescentes da formação original, que têm a companhia da cantora Ana Costa e do cavaquinista Alceu Maia. Outra atração do show é o cantor Moacyr Luz. O cantor e compositor que tem parceria com Aldir Blanc, Paulo César Pinheiro e Hermínio Bello de Carvalho, e foi criador do já tradicional Samba do Trabalhador, conta que conheceu Zé Kéti, há 30 anos, no Boteco de Dona Maria, na Tijuca, onde ocorriam rodas de samba. “Já gravei músicas de Zé Kéti, que costumo cantar no Samba do Trabalhador. Sempre o vi como um personagem importantíssimo da história do samba”, acentua.
Em 3 de março, no encerramento do 100 Anos da Voz do Morro, o público poderá apreciar, no palco do CCBB, o Casuarina, conjunto de grande popularidade entre os brasilienses. Formado por Gabriel Azevedo, Rafael Freire, Daniel Montes e João Fernando. O grupo, que também deu importante contribuição para o “ressurgimento” da Lapa, tem no currículo seis álbuns, vários sucessos, apresentações no exterior e prêmios conquistados. Com eles, estará a cantora e bandolinista Nilze Carvalho, ex-Sururu na Roda, que se mantém em carreira solo. “Vejo Zé Kéti ao lado de Cartola, Nelson Cavaquinho e Paulinho da Viola, como um dos mestres do samba. Costumo incluir clássicos da obra dele, como Acender as velas, Leviana e Mascarada no repertório dos meus shows”.
Zé Kéti — 100 Anos da Voz do Morro
Eu sou o samba, show de abertura do projeto em homenagem ao cantor e compositor carioca, com João Cavalcanti e Fabiana Cozza, hoje (10 de fevereiro), às 20h. Antes, haverá palestra sobre o tema Em tempo — Machismo não é questão de opinião. No teatro do Centro Cultural Banco do Brasil (Setor de Clubes Sul). Serão disponibilizados 150 lugares, sendo três para obesos, três para pessoas com mobilidade reduzida e 10 para cadeirantes. Os ingressos custam R$ 30 e R$ 15 (meia para clientes do Banco do Brasil, maiores de 60 anos, portadores de deficiência física e acompanhantes. Classificação indicativa livre.
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Gênio do samba
Filho de cavaquinista e neto de flautista e pianista, José Flores de Jesus, o Zé Kéti, nasceu no Rio, em 1921, e cresceu em ambiente musical, onde, com frequência, ocorriam rodas de choro que, por vezes, tinham a participação de Pixinguinha. Na infância, ganhou o apelido de Zé Quieto, encurtado para Zé Kéti, que se tornou seu nome artístico.
No começo da década de 1950 compôs A voz do morro, gravado originalmente por Jorge Goulart e posteriormente por outros cantores e cantoras. O samba serviu de tema para Rio 40 Graus, filme clássico de Nelson Pereira dos Santos. Em 1963, o compositor foi tomado como referência por grandes intérpretes da Bossa Nova, entre eles, Nara Leão. Ao lado dela e João do Valle foram protagonistas do musical Opinião, criação de Oduvaldo Viana Filho. Nara, depois foi substituída por Maria Bethânia, em início de carreira.
Logo em seguida, Zé Kéti formou o grupo A Voz do Morro com Elton Medeiros, Nelson Sargento, Jair do Cavaquinho e Paulinho da Viola. Em 1967 compôs com Hildebrando Pereira Matos a marcha-rancho Máscara negra, que ganhou Dalva de Oliveira como intérprete e está sempre presente no repertório de bailes de carnaval. Zé Kéti, que esteve em Brasília algumas vezes, inclusive fazendo apresentações, morreu em 14 de novembro de 1999 em dificuldades financeiras.