É a partir da observação do cotidiano e das “adultices da vida”, como define, que a atriz e roteirista Nathalia Cruz, 31 anos, cria as histórias que interpreta e outras que servem de roteiro para o canal de humor Porta dos Fundos. Goiana de sangue, nascida no município de Santa Tereza de Goiás, e artista crescida e criada em Brasília, Nathalia diz que não sabe ao certo quando nem como foi picada pelo “bicho da arte”. Contudo, lembra que no ensino fundamental fez escola de teatro e, desde então, o desejo de atuar prevaleceu.
A trilha que a conduziu até a vaga no Porta dos Fundos e, hoje, também investe em roteiros ligados a uma plataforma de streaming, que ainda não pode revelar o nome nem sempre foi de música alta e empolgante. Mas, ser reconhecida pelo bom humor e como uma pessoa divertida causava um certo desconforto em Nathalia. Formada em publicidade pela Universidade de Brasília (UnB), ela trabalhou no mercado da comunicação, em Brasília, até decidir que era hora de se “achar na carreira artística”.
Em 2013, resolveu, sem grandes planejamentos, se mudar para o Rio de Janeiro, fazer um curso de teatro no Tablado para estar perto geograficamente das oportunidades. “Fiquei três anos, mas não foi como esperava. Achava que teria a oportunidade de um olheiro me achar e me levar para a novela das nove”, brinca. Na época, Nathalia trabalhou como assistente em uma produtora de cinema e não deixava de mandar e-mail para pessoas que a poderiam contratar, como o humorista Fabio Porchat. “Chegava a chutar os e-mails na tentativa de alguém receber e me responder”, lembra aos risos.
“Voltei a Brasília. Para mim, estava me despedindo dessa vida, dessa fantasia. Era hora de brincar de ser adulta e pagar as contas”, descreve a atriz. De volta à capital do país, Nathalia retomou o trabalho com comunicação, mas, motivada por amigos, começou a gravar vídeos com pequenas esquetes humorísticas para o YouTube. “Quando vi o primeiro editado, lembro de pensar que aquilo me representava. Não tinha vergonha do que estava ali, da mensagem”, conta.
Com o material em mãos, a artista retomou as tentativas via e-mail. “Mas, desta vez estava com os endereços certos”, acrescenta aos risos. “O Porchat sempre foi alguém que admirei o trabalho e tinha, no Porta, um lugar que eu queria trabalhar. Ele foi o único que respondeu e foi bem objetivo. Me convidou para gravar um vídeo no Rio”, relembra. “Primeiro, pensei que poderia ser um trote. Mas decidi pagar o preço”, acrescenta.
Maternidade foi o primeiro vídeo do Porta gravado com Nathalia. Depois dele, surgiu a oportunidade de enviar ao humorista e um dos fundadores do canal possíveis roteiros. No final de 2019, ela mandou a relação de uns 20 roteiros. “Estudei muito os vídeos do Porta. Era um desafio”, comenta. Após o envio dos textos, a atriz foi chamada para mais um vídeo, Futuro ex-Porta, e ali começava de fato a escrever sua história com o canal humorístico.
Ao lado de outro brasiliense, esse radicado no Rio de Janeiro há mais de dez anos, Nathalia passava, assim, a integrar a equipe de roteiro do Porta. “Sempre gostei de escrever para mim, a gente se conhece, sabe os pontos de graça. Então, foi um desafio escrever para as pessoas interpretarem. Você tem que colocar no texto a intenção. Além disso, lá, sempre apresentamos três esquetes na reunião de roteiro e nem sempre a leitura fica tão boa quanto está no papel”, conta.
Para a atriz e roteirista, o encanto da profissão vem da possibilidade de criar mundos fantásticos. “De tornar real o que não seria, de ser várias pessoas, de representar e falar o que não falaria. De criar um background para o personagem, de tentar entender a mente. Brinco que é a fantástica fábrica da mente doida”, descreve. A escrita também não deixa de ser um processo de cura e amadurecimento, como comenta Nathalia. “Muitas vezes você empresta sim suas dores para os personagens e fala de um lugar muito íntimo”, afirma. “Roteiristas se comparam a uma espécie de Deus, mas não deixa de ser uma verdade. É um super poder no mundo da arte, de criar mundos que podem servir de veículo para as pessoas se reconhecerem e se identificarem”.
Entrevista // Nathalia Cruz
Onde você busca referências e inspirações para os textos?
Da observação. Claro que tem coisas que para mim serão sempre engraçadas e me chamam atenção. Mas quando a fonte seca, preciso arejar, estar em lugares e beber de outras fontes. Gosto de ver séries e como as pessoas contam uma história. Também tem um pouco de ampliar os pequenos absurdos do dia a dia e, para saber como ampliar, ouço como espectadora da minha família, do meu namorado. Esses dias a vizinha gritou: “não sei o que adianta ser vegano e beber tanta cerveja”. Acho que estava falando com o filho, era o completo desespero dela ali. Na mesma hora já fui pesquisar para saber se tinha alguma relação. Então, quanto mais cotidiano é, mais gente vai se identificar.
O que você mais gosta de roteirizar?
As adultices que o adulto faz. A gente é muito infantil grande. Por exemplo, no trânsito, a forma como a gente compete com o outro carro, não quer deixar o outro passar, são exemplos de adultices.
Como é fazer humor hoje?
No Porta, não é um humor muito isento. Tem algumas feridas. E o trabalho anterior a essa escrita é sofrido. Ano passado, por exemplo, vivemos um momento de perdas, de luto, e seu trabalho é gerar uma risada e tem horas que parece que não dá, não tem como. Parece que a gente está rindo de desgraças e a gente não quer fazer as pessoas rirem de desgraça. Ao mesmo tempo, fico feliz desse ser o trabalho, de trabalhar com o humor, porque acho que se não fosse não ia me forçar a rir.
Você comentou que o Fabio foi uma espécie de mentor. Como é a sua relação com ele?
É uma ótima relação, você vê seus ídolos virando seus colegas de trabalho, seus amigos. Ali, me sinto pertencente. Os dias mais angustiantes quando trabalhei fora da área, eram os dias que mais tinha coisa para fazer, mas me perguntava para onde estava indo, o que estava fazendo. No Porta e com o Fábio, sei para onde está me levando, tenho um norte. Ele foi um chefe que escolhi ter, o que me ajudou muito a confiar no meu instinto. Também é uma pessoa inspiradora, que estimula a gente a se descobrir, sem cercear, sem condicionar. Nos ensina a não esperar ninguém te achar, mas ir lá e fazer.
Se você fosse roteirista da própria vida, você estaria satisfeita?
Sim! Obviamente, ia mexer na cabeça da personagem principal. Atribuo as demoras das coisas que chegaram, das conquistas, aos meus processos. Às vezes acho que são esticados e lentos. Entendi que quando aparece uma oportunidade, eu tenho medo. Mas, durante algum tempo, eu paralisei. Então, faria uma personagem principal um pouco mais sagaz e atenta. Mais porra louca, sabe?
Como seria o roteiro da Nathalia daqui alguns anos?
Depois desses anos que estamos vivendo, desejo chegar num filme de comédia romântica com uma trilha do Stevie Wonder ao fundo. Chegar naquele ápice da música alta, sabe? Sem máscara, na praia. (risos). Quero viver tempos de qualidade com os meus pais, com as pessoas ao meu redor e contribuir com os outros.
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