ENTREVISTA

Celebrando 55 de carreira, Gal Costa analisa sua trajetória e o momento do país

Musa da Tropicália, que lança seu mais recente projeto em versão física, conversou com o Correio

Irlam Rocha Lima
postado em 27/02/2021 06:00
 (crédito: Marcos Hermes/Divulgação)
(crédito: Marcos Hermes/Divulgação)

Ousadia tem sido a marca registrada de Gal Costa desde que iniciou a trajetória artística, na segunda metade da década de 1960. Na quarta edição do Festival da Record — um marco na história da MPB —, ela, que tinha João Gilberto como maior referência, deixou de lado o canto intimista da bossa nova e soltou a voz como se fosse uma roqueira ao interpretar Divino maravilhoso, parceria de Caetano Veloso e Gilberto Gil — com letra que afrontava a ditadura militar.

Em Fatal, o antológico show que protagonizou entre 1971 e 1972, o repertório trazia desde a tradição do samba, representado por Antonico (Ismael Silva), à canção pop Sua estupidez (Roberto e Erasmo Carlos), passando pela psicodélica Vapor barato (Macalé e Walli Salomão). Em Índia, outro espetáculo inesquecível, Gal, sentada, com as coxas à mostra, cantava Trem das onze (Adoniran Barbosa), se acompanhando ao violão. Mas ela fez mais: em O sorriso do gato de Alice, visto pelo brasiliense na Sala Villa-Lobos, exibia os seios na performática Brasil, do poeta Cazuza.

A Mãe de todas as vozes, como a chamou Nando Reis numa música que compôs para ela, volta a ousar, de outra forma, ao lançar Nenhuma dor, álbum com o qual celebra 75 anos de vida e 55 de carreira. Nesse projeto, ela se fez acompanhar, em duetos, por cantores das novas gerações, nas 10 faixas que trazem a recriação de canções consagradas de sua obra. A menos conhecida é a que dá título ao trabalho, garimpada do repertório de Domingo, o LP que dividiu com Caetano Veloso, na estreia de ambos em disco, em 1997. Trecho da letra de Torquato Neto diz: “É preciso, ó doce namorada/ Seguirmos firmes na estrada/Que leva a nenhuma dor”.

Segundo a cantora baiana, Nenhuma dor — gravado durante a quarentena, determinada pela pandemia da covid-19 — nasceu como um projeto digital, que lhe foi sugerido pelo produtor Marcus Preto, com quem trabalha desde o Estratosférica. Inicialmente — a partir de novembro último —, foram lançados pares de singles nas internet. Mas, diante da ótima resposta do público, decidiu-se por reuni-los nos formatos físicos de CD e vinil, com capa criada pelo artista plástico Omar Salomão.

Gal conta que a ideia do Nenhuma dor surgiu durante uma conversa com Marcus Preto, depois da percepção de ambos do afeto que um público mais jovem vinha demonstrando pelo legado de artistas da geração que tem Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Maria Bethânia e ela própria como nomes estelares. Os dois chegaram a esta conclusão ao tomar conhecimento do expressivo consumo, no período da pandemia, da música de catálogo no mundo. Eles acreditam que essas canções fazem parte da memória afetiva de muita gente e estão na trilha sonora de melhores e mais esperançados tempos, para dar estrutura diante das incertezas deste momento.

Os primeiros convidados para participar do projeto foram artistas com quem Gal já vinha trabalhando no palco e nos álbuns Estratosférica (2015) e A pele do futuro (2018): Criolo, Silva, Rubel, Tim Bernardes e Zeca Veloso. Em seguida, foram chamados Seu Jorge, Rodrigo Amarante e Zé Ibarra, além do uruguaio Jorge Drexler e do português Antonio Zambujo. Todos tomaram parte da produção da própria faixa e alguns tocaram instrumentos de base, que depois ganharam arranjos de cordas, criados por Felipe Pacheco Ventura, responsável também pelas faixas inteiras de Criolo e Zambujo.

Caetano Veloso, autor mais gravado por Gal ao longo da carreira, marca presença nesse disco com nada menos que seis músicas: Avarandado, Baby, Coração vagabundo, Domingo, Meu bem, meu mal, Nenhuma dor (parceria com Torquato Neto) e Paula e Bebeto (que fez com Milton Nascimento), além de Negro amor, versão de It’s all over now, Baby Blue (Bob Dylan), escrita com Péricles Cavalcanti. Há ainda no repertório Pois é (Tom Jobim), Só louco (Dorival Caymmy) e Juventude transviada (Luis Melodia).

Zé Ibarra conta que ouve Gal Costa desde a infância. “A primeira vez foi numa visita à casa de familiares, na Ilha de Itaparica (BA), debaixo de um cajueiro, quando meu pai colocou no aparelho de som o disco em que ela cantava canções de Dorival Caymmi. Agora, 20 anos depois, estamos eu e ela, a grande protagonista da minha vida musical, gravando um fonograma juntos.” O vocalista acrescenta: “Espero que, fazendo duo com Gal em Meu bem, meu mal, de alguma forma esteja fazendo um bem para ela, assim como ela fez e continua fazendo por mim”.

Já Rubel, citando verso da canção, que participa diz: “Meu coração não se cansa de agradecer o privilégio que é poder cantar Coração vagabundo, uma das minhas músicas preferidas, de um dos meus discos preferidos, ao lado da maior cantora do Brasil”. Ele complementa: “Tentei ser o mais fiel à estética minimalista de Domingo, do violão joãogilbertiano de Caetano. Busquei respeitar e reverenciar o que já é perfeito e belo. Essa é a nossa segunda parceria. Espero que seja a segunda de muitas”.

Na busca de demonstrar o contentamento pelo convite para tomar parte do projeto, cantando Negro amor com a musa do movimento tropicalista, o uruguaio Jorge Drexler escreveu um texto elogioso em forma de poema: “Boca de carmim profundo/ Noite profunda, o cabelo/ É uma voz puro desejo/ Todo desejo do mundo/ Naquele primeiro segundo/ Que ouvi seu canto floral feito seda e cristal/ Meu coração juvenil pensou/ Já entendo o Brasil/ Brasil é a voz de Gal”.

Celebrar 75 anos de vida e 55 de carreira com esse projeto foi uma forma de trazer alento e alegria às pessoas em tempos tão difíceis?

Sem dúvida. Para mim também foi um momento de respiro e de alívio ir para o estúdio gravar. Esse é um momento em que as pessoas estão tendo prazer em ouvir músicas de catálogo, músicas da minha geração. É a memória de um tempo que era bom. Quero despertar só coisas boas nas pessoas, e é muito gratificante saber que esse disco pode levar um conforto, um pouco de alegria para quem gosta e se conecta com o meu trabalho.

Por que quis gravar um álbum em que recria canções do seu repertório, em duo com cantores das novas gerações?

Esse era um projeto que chamava Gal 75, que a gente tinha a intenção de fazer virar um disco. O Marcus Preto teve essa ideia antes da pandemia, mas ele foi concretizado durante a quarentena. O ponto central desse trabalho é que são todos cantores homens que foram influenciados pelo meu trabalho. Eu tenho uma grande influência de um homem, que é o João Gilberto. Então, Marcus Preto teve a ideia e juntar esses artistas.

Pelo visto, você tem ocupado a interminável quarentena como poucos. De onde vem tanto fôlego?

Eu adoro a vida, ela é muito preciosa para mim. Não me sinto velha, tenho uma alma jovem e tenho energia para cantar até quando der. A minha energia vem da música, da vontade de ousar sempre, de arriscar, fazer coisas novas, isso me alimenta muito.

A escolha das canções e dos participantes do álbum foi sua?

Foi uma escolha feita a quatro mãos. Os convidados me foram trazidos pelo Marcus Preto e eu recebi com muito amor. Eu já conhecia o trabalho de todos eles, com alguns já tinha trabalhado antes e achei ótimo, porque gostava de todos eles. Ficaram várias canções de fora. A ideia inicial era regravar sucessos meus que não estavam nos dois shows recentes (Estratosférica e A Pele do Futuro). Separamos algumas faixas, mas alguns convidados sugeriram também outras canções.

Os jovens têm mostrado apreço por músicas de artistas como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Milton Nascimento e outros da mesma geração que a sua. Na sua visão, por que isso ocorre?

Eu acho que essa pandemia despertou nas pessoas um prazer em ouvir músicas de catálogo, músicas de minha geração, que são a memória de um tempo bom.

Que lembrança guarda da musa da Tropicália, da Gal Fatal que era celebrada no palco e nas Dunas da Gal?

Eu sou todas as Gals. Não dá para desvincular uma da outra. A única diferença entre elas é que hoje, mesmo continuando jovem espiritualmente, eu sou mais experiente. A maturidade traz mais confiança, mais serenidade e segurança. O meu espírito não acompanha minha idade cronológica, porque minha alma é jovem. Tenho uma carreira rica, cheia de nuances e mudanças. Isso me motiva sempre.

Qual a avaliação faz do Brasil de hoje, sem vacina para os brasileiros e com desprezo à cultura por parte das autoridades governamentais?

Primeiro de tudo, me incomoda muito a incompetência desse governo. É um governo que tem proposta erradas, contra a ciência, contra a cultura, que fecha os olhos pro desmatamento e não percebe como tudo isso afeta a vida de todo mundo. Temos um presidente, na minha visão, com um perfil ditador. Ele ataca e quer banalizar a arte. É de uma ignorância, uma falta de consciência. Ele tem sido maléfico para a cultura do Brasil, e eu fico chocada com a falta de informação que ele espalha. A arte é a identidade de um povo, ela dá energia e sustentação para as pessoas seguirem em frente em suas jornadas. Mas tenho a esperança de que dias melhores virão.

Nenhuma dor

Álbum de Gal Costa, nos formatos de CD e vinil, com 10 duetos, que tem a participação de cantores das novas gerações. Lançamento da Biscoito Fino. As músicas estão disponíveis também nas plataformas digitais.

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