Nara Leão, mulher de garra

Livro conta a história de uma das cantoras mais importantes da MPB e revela também a força política da artista numa época difícil

» Irlam Rocha Lima
postado em 09/03/2021 19:32
 (crédito: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press)
(crédito: Arquivo O Cruzeiro/EM/D.A Press)


Delicadeza personificada, Nara Lofego Leão era uma transgressora. Embora tenha se tornado conhecida como musa da Bossa Nova, avessa ao reducionismo, emprestou a suavidade do seu canto aos mais diversos estilos e movimentos musicais. A cantora foi a primeira intérprete de sua geração a dar vez em disco a sambistas populares; dividiu com Chico Buarque a interpretação de A banda, no Festival de Record de 1966; se juntou a Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa na Tropicália; e gravou E que tudo mais vá pro inferno, disco só com canções de Roberto e Erasmo Carlos.
Na vida pessoal, a cantora fugiu da monogamia, tendo vários relacionamentos. Como cidadã, mesmo sem ser exatamente uma militante política, de forma corajosa, confrontou os militares, em plena ditadura, na defesa da liberdade de expressão. Esses e outros fatos — em especial a trajetória artística — são narrados na recém-lançada biografia Ninguém pode com Nara Leão.
Com fluência, Tom Cardoso, o autor do livro, reconstrói a trajetória da artista capixaba, filha do advogado Jairo Leão e da professora Altina Lofego Leão, e irmã da ex-modelo, jornalista e escritora Danusa Leão, desde a infância, em Vitória, até os últimos dias de existência, em 1989, aos 47 anos. O título da obra — com prefácio de Tárik de Souza, conceituado crítico da MPB — foi pinçado de uma carta escrita por Glauber Rocha para Cacá Diégues, então marido da cantora. À época, o casal estava exilado em Paris.
Logo num dos primeiros capítulos da obra, o biógrafo se detém nos famosos encontros promovidos por Nara, ainda bem jovem, no final da década de 1950, no apartamento da família, na Avenida Atlântica (Rio de Janeiro), dos quais tomavam parte músicos que viriam a ter importante papel na criação da Bossa Nova, entre eles João Gilberto, Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli. À época, os dois últimos foram namorados da cantora. Amiga de Vinicius de Moraes e Carlos Lyra, protagonizou a peça Pobre menina rica, escrita por eles.
Inquieta, logo depois se aproximou de artistas ligados ao Cinema Novo e ao Centro Popular de Cultura (CPCC), entre eles Armando Costa, Oduvaldo Viana Filho, Paulo Pontes e Augusto Boal, aos quais se juntou no Opinião, espetáculo de temática política, em que dividiu o palco com Zé Kéti e João do Valle. Aliás, o título veio do disco-manifesto, o segundo da cantora, intitulado Opinião de Nara, lançado sete meses depois do golpe de 1964. Além de ter sido uma das estrelas do musical, ela teve o mérito de abrir espaço para o surgimento de Maria Bethânia, aos 18 anos, a quem convidou para substituí-la em cena.

Livre

No espetáculo, ao cantar o samba Opinião, de Zé Kéti , Nara dava ênfase ao verso que dizia: “Podem me prender, podem me bater, podem até deixar-me sem comer/ Que eu não mudo de opinião/ Daqui do morro eu não saio não...”. O canto livre e o ponto de vista da cantora sobre a ditadura passou a incomodar os detentores do poder. Tom Cardoso conta que, em 1966, numa entrevista ao Diário de Notícias, Nara afirmou: “Os militares podem entender de canhão e metralhadora, mas não pescam nada de política”.
Cardoso prossegue: “Por conta dessa declaração, o marechal Arthur da Costa e Silva ameaçou enquadrá-la na Lei de Segurança Nacional, levando a classe artística e intelectuais a reagirem. O poeta Carlos Drummond de Andrade se manifestou ao escrever um poema com o título Apelo — Não deixe que prendam Nara Leão. No mesmo ano, ela esteve ao lado de Chico Buarque, na primeira edição do Festival da Record, na interpretação de A banda, marchinha que dividiu o primeiro lugar com Disparada, de Théo de Barros e Geraldo Vandré, defendida por Jair Rodrigues. Sempre mutante, em 1968, participou da Tropicália, gravando no álbum, síntese do movimento, o bolero Lindoneia, composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil.
Aspectos da vida particular da artista são relatados em Ninguém pode com Nara Leão. Depois de um relacionamento com Ruy Guerra, em 1967, Nara se casaria com Cacá Diegues. Juntos por 10 anos, tiveram os filhos Isabel, nascida no exílio em Paris; e Francisco, depois do retorno ao Rio de Janeiro. No ano seguinte. No auge da estrelato, deixou a música de lado por um tempo para estudar psicologia na PUC-RJ, sem ser reconhecida pelos colegas de classe, 10 anos mais novos.
Quando decidiu retomar a carreira, em 1978, o fez com o LP E que tudo mais vá pro inferno, dedicado ao cancioneiro de Roberto e Erasmo Carlos, em mais uma guinada que deixava claro o seu descompromisso com a mesmice. Entre 1984 e 1987, surpreendeu muita gente, ao voltar a gravar músicas do repertório da Bossa Nova, nos discos Abraços, beijinhos e carinhos sem ter fim, Garota de Ipanema e Nara e Menescal — Um cantinho, um violão. Este último marcou o reencontro com um velho amigo, duas décadas depois.
O livro levou Cacá Diegues a exaltar o comportamento da mãe dos seus filhos: “A importância de Nara Leão na cultura brasileira não se restringe à música popular, muito menos ao específico de Bossa Nova, do samba de morro, do Tropicalismo. Ela ajudou decisivamente a mudar o jeito da mulher brasileira a libertá-la de preconceitos antigos e dar-lhe um novo sentido e um novo modo de estar no mundo”.

Ninguém pode com Nara Leão — Uma biografia

De Tom Cardoso com 240 páginas. Livro físico R$ 49,90 e E-book R$ 39,90. Lançamento da Editora Planeta.


» Na capital
Nara Leão veio a Brasília várias vezes para shows. Num deles, pelo projeto Pixinguinha, apresentou-se na Piscina Coberta, acompanhada pelo grupo Carioquinhas, que tinha entre os integrantes o jovem violonista Raphael Rabello. No começo da década de 1980, por conta do relacionamento com um servidor público, morou algum tempo na cidade. Naquela época, chegou a participar de um show de Fagner e foi apresentada a Clodo, Climério e Clésio, dos quais se tornou amiga. No LP Romance popular, de 1981, gravou Por um triz, dos irmãos piauiuenses-brasilienses. E os homenageou na faixa Cli Cle Clo, composta por Fagner e Fausto Nilo.

» Entrevista/ Tom Cardoso
O que o levou a escrever a biografia de Nara Leão?
Sempre tive muita admiração pelo legado de Nara Leão, não apenas da cantora, mas também a artista e cidadã revolucionária que ela foi. Essa é a primeira biografia que escrevi sobre uma mulher.

Entre pesquisas, entrevistas e criação do texto, você esteve envolvido por quanto tempo com a história da artista?
Eu me dediquei por três anos a esse projeto. Entrevistei artistas que foram ligados à Nara, entre os quais Roberto Menescal, Carlos Lyra, Cacá Diegues e Ruy Guerra. De todos obtive depoimentos reveladores, que foram muito importantes para a biografia. Contei também com a colaboração do consagrado crítico da MPB Tárik de Souza, profundo conhecedor da obra de Nara. Danusa, porém não me concedeu entrevista. Ela disse que era penoso falar sobre a irmã.

Qual a faceta de Nara que mais lhe chamou a atenção?
Sem dúvida a da artista revolucionária sobre todos os aspectos, que, sem medo, encarou os militares que implantaram a ditadura no país.

Em relação ao posicionamento político da cantora, há algo que você destaca?
No começo da carreira, ela se posicionou. O segundo disco que lançou, sete meses depois do golpe de 1964, tinha como título Opinião de Nara. O espetáculo que ela faria depois com Zé Keti e João do Vale foi inspirado no LP. Por causa de uma entrevista que deu ao Diário de Notícias, foi ameaçada de enquadramento na Lei de Segurança Nacional.

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