A arte de sorrir

Arremedo de Princesa Leia: no filme Lucicreide vai pra Marte há paródia que alcança a saga Star Wars

» Ricardo Daehn
postado em 11/03/2021 19:45
 (crédito: Globo / Carol Vianna.)
(crédito: Globo / Carol Vianna.)

Não teve jeito. Com o lockdown na capital, a goleada nas bilheterias de cinema prometida pela divertida Fabiana Karla, atriz e produtora da comédia Lucicreide vai pra Marte, ainda no pode ser concretizada. O sucesso, porém, espera a próxima reabertura das salas de cinema do Distrito Federal. Pelo filme, sob a direção de Rodrigo César, Fabiana foi capaz de muito: até mesmo extrair a vesícula para se ajustar ao cronograma de filmagens nos Estados Unidos. Em entrevista ao Correio, a pernambucana Fabiana Karla fala sobre as origens da personagem, afirmada pelo olhar em torno do povo simples, dos esforços em prol do cinema e da difusão de alegria, em meio à insegurança com o cotidiano impregnado pelo novo coronavírus.


» ENTREVISTA / Fabiana Karla

Você construiu a personagem muito vinculada à observação do povo? Acha que as pessoas, por vezes, te confundem com a personagem?
Sempre foi por observação, sim. Minha matéria-prima sempre foi o povo. Então, tenho muito da Lucicreide dentro de mim, mas acho que as pessoas sabem diferenciar. Mas quando estou muito à vontade, às vezes, eu me pego muito Lucricreide. Por alguns momentos, quando estou incomodada, esbravejando, quando peço uma coisa ou quando peço outras tantas, eu me pego meio Lucicreide. Acho que é uma herança, porque vem de família também. A personagem vem de eu observar, do meu olhar para as mulheres da minha família. É como se eu estivesse fazendo uma caricatura, uma charge dessas mulheres, e eu trago as tintas fortes que elas me entregaram ao seu longo da vida.

Mas houve elaboração?
A construção dela veio do meu olhar. Era uma criança que tinha uma mirada muito particular para o humor. Eu me vejo, ainda pequena, rindo de um LP que o papai colocava do Coronel Ludugero, que era um comediante chamado Luiz Jacinto Silva, e que fazia trio com Otrópe e Felomena; eu ria muito das piadas e aquilo me chamava a atenção. Em vários momentos, a tevê local trazia pessoas reclamando que faltava saneamento básico, e essas vivências do tipo: achava engraçado, aquilo me chamava a atenção, eu ria demais. Só que eu legitimava a dor daquelas pessoas, estão, a Lucicreide cresceu com misto das minhas vivências e das mulheres fortes que estiveram ao meu redor, mas que também eram acolhedoras. E como alerta das dores reais das pessoas e das forças dessas mulheres. Mas tudo de forma muito leve, por meio da ferramenta potente que é o humor.

Lucicreide traz uma identidade forte, desde quando?
Nunca me apeguei muito a datas. Mas eu tenho 45 anos e faço a Lucicreide desde os 14, 15 anos, brincando. Em 1991, ganhei o prêmio de melhor atriz, quando, pela primeira vez, levei Lucicreide para o palco. Foi num festival de teatro amador do Teatro Barreto Júnior, em Recife. Daí, curti fazer mais a Lucicreide, comecei a fazer teatro infantil na cidade, trabalhei profissionalmente, em outros espetáculos. Mas a Lucicreide sempre esteve comigo ali. Num trunfo que levei por muito tempo e apresentei para o nosso querido Maurício Scherman (diretor televisivo, morto em 2019), tempos depois, e que ficou nos quadros do Zorra Total.

Você chega a Marte, atua em São Paulo e no Rio de Janeiro. Você deixou o Nordeste, mas, e ele, não te deixou?
Olha, acho que o humor desconhece barreiras. É como a música que você escuta, pode ser em outro idioma, às vezes, você nem sabe o que está cantando, mas você curte. Eu costumava ver coisas de Bollywood (o centro do popular cinema indiano) então ria muito com os trejeitos; humor é um estado. É o que desperta o teu olhar. É o que te conecta com outro, acho que não tem tempo, não idade, não tem língua, não tem barreira.

Você tem inspirações e ídolos?
Eu gosto muito de Mazzaropi, por exemplo. Eu vejo a Lucicreide indo para Marte, e penso num Mazazropi agarrado no sputnik (risos); faço essa comparação, mas é sem pretensão alguma, porque Mazzaropi é um grande nome né? É um humor que não tem época: se assistir Mazzaropi, hoje, vou rir do mesmo jeito. Minhas inspirações vieram de Luiz Jacinto Silva e de Chico Anysio. Ele estendeu um tapete vermelho para os que vieram depois, e que passaram. Tenho vários exemplos de pessoas que admirava e que abriram as portas do país, mostrando que nordestino era um prenúncio de boas coisas. Tom Cavalcante, com quem tenho um prazer de trabalhar, Renato Aragão e Chico Anysio mostraram para pessoas que eram bem-sucedidos. Com um humor muito particular e que encanta a todos. Independentemente da regionalidade.

O novo filme teve muita trucagem ou foram realistas nas cenas?
Foi um divisor de águas e encarei. Faria tudo de novo. Quando olho a cena da gravidade zero, digo: ‘Caramba, a gente é muito corajoso!’ (risos). E, nas filmagens pelas dependências da Nasa (Administração Nacional da Aeronáutica e Espaço), a gente realmente passou no circuito para ver como era, e fiz uma simulação com Marcos Pontes (o astronauta brasileiro), como se estivesse tocando uma peça de aeronave. Foi engraçado e interessante. A gente fez tudo real, tudo que vai assistir na tela é o que realmente foi feito. Poderíamos ter usado simuladores. Não teria o mesmo efeito, e eu não teria história para contar. A produção foi cara, teve uma aplicação de imagem em algumas cenas. Mas tudo foi muito, muito real.

Houve exigências físicas puxadas?
Olha: teve muita demanda física, sim. Vou te dizer que foi uma tarefa hercúlea voar no avião de gravidade zero. Porque mexe como os órgãos, mexe com o corpo. A gente tá falando de gravidade! Então eu fiquei bem parecendo que estava de ressaca, dois dias depois.

Além do preparo físico e psicológico, houve mais desafios?
Tivemos que nos empenhar. Tinha que ter uma alimentação a ser respeitada. Tinha que comer só lá (junto à equipe internacional), fazer o nosso café da manhã lá (na Nasa), porque tudo que a gente ingerisse, se a gente viesse a passar mal no voo (gravidade zero), virava um novo passageiro (risos).

Você falou em alimentação e o filme brinca com questões de peso. Há limite para bullying em comédia?
Acho que tem limite para cada um. O tipo humor que faço é no qual consigo me identificar, ter empatia e brincar com as pessoas, sem ofender. Existem outras pessoas que se sentem confortáveis de fazer outros estilo de humor. O meu estilo de humor é um em que não consigo fazer graça com defeito físico, ou deixar a pessoa em situação triste. Porque acho que é algo que já fizemos, é antigo e que nunca resultou. Quando você coloca outra pessoa em sofrimento, num lugar de humilhação, para mim, não estabelece um tipo de humor. Então, reproduzo o tipo de humor em que eu acredito. Acho que trazemos com o filme, o nonsense. O mesmo de brincar, em casa. Tem o humor que ultraja, humilha, e tem a brincadeira que a gente faz com irmão. Sem ofender, a gente ri, e que o outro não se sente ofendido, e que cabe a piada.

Muitos cinemas estão fechados. O que me diz das idas ao cinema?
Acredito nesse protocolo (medidas para proteção da saúde de todos), mas é um momento difícil, e estamos usando o humor como ferramenta, numa época em que as pessoas estão com tanto sofrimento. Nós, artistas, temos como levar um pouco de alento, de alegria, num momento tão difícil para as pessoas. A gente tenta ofecerer a arte a serviço das pessoas, e é uma ferramenta muito importante e muito potente. Acho que não só nesse momento, em todos, porque a arte salva.

“Tenho vários exemplos de pessoas que admirava e que abriram as portas do país, mostrando que nordestino era um prenúncio de boas coisas. “

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