Como janelas para acessar o passado e suas ambiguidades, mas também como ferramentas de construção de comportamento e modelos éticos e estéticos, a socióloga mineira Isabelle Anchieta mergulhou em um universo de imagens para descobrir como as mulheres são tratadas ao longo da história. Foram oito anos garimpando xilogravuras, panfletos, esculturas, fotografias, pinturas e filmes em arquivos, bibliotecas e museus de nove países para compor a tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (USP). O trabalho se transformou em livro. A trilogia Imagens da mulher no Ocidente Moderno, lançada pela Editora da USP, está na terceira edição.
O sucesso tem surpreendido a autora. “Nunca escrevi uma tese, apesar de ser uma pesquisa acadêmica. Acredito que podemos ser simples sem ser simplórios”, descreve Isabelle. Além da escrita clara e direta, a socióloga avalia que um dos grandes méritos do material é o outro ângulo escolhido por ela para revisitar a história da mulher. “Não percebo a mulher como vítima passiva do olhar masculino, ela subverteu a imagem a seu favor. Ao revisitar essa história, reposicionei a mulher em um outro lugar. Afinal, desde que há uma mulher em sociedade, há vontade de autodeterminação”, afirma.
No decorrer de quase 700 páginas, Isabelle destrincha imagens femininas que se tornaram ícones — as mais citadas, imitadas e reproduzidas ao longo da história. O primeiro livro foca em Bruxas e Tupinambás Canibais; o segundo, Maria e Maria Madalena; o último, Stars de Hollywood. O resultado dessa trajetória e desse outro olhar é o que a socióloga chama de “individumanismo” ou “individumanização”: “Primeiro, as mulheres lutaram para humanizar-se, como as bruxas e Maria Madalena, e, depois, lutaram para individualizar-se, ter um rosto neste mundo”.
Entre mais de 800 imagens, é difícil para a socióloga apontar aquela com a qual mais se identifica, ainda mais que, para ela, as imagens constroem uma certa biografia das mulheres. Contudo logo no início da obra, a autora apresenta o mito da Aracne versus Atena e confessa se identificar com a jovem mortal de extraordinária habilidade de bordar. “É uma mortal que desafia uma deusa. A história vai dizer de uma mulher que não teme os deuses, as hierarquias nem o fato de ser mulher. Também é o símbolo da sociologia, de tecer histórias e ir amarrando o conjunto de histórias e ambiguidades humanas em um só lugar”. Assim como Isabelle faz no decorrer da narrativa de Imagens da mulher no Ocidente Moderno. Como um grande bordado, uma referência visual vai puxando a outra e construindo a representação da mulher ao longo da História.
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Entrevista / Isabelle Anchieta
O que é a trilogia? E por que fazê-la?
É o resultado de uma pesquisa de doutorado, na qual passei oito anos estudando, da Idade Média até a Modernidade para entender o crescente processo de humanização e de individualização nas sociedades modernas, o porquê fomos deixando aos poucos de tornar o sexo, a cor, a etnia como marcadores de diferenciação e de submissão para entendermos uma certa igualdade, para valorizar as nossas trajetórias individuais. Escolhi a mulher como imagem emblemática desse processo porque, ao começarem a decidir com quem se casar, a ter filhos, elas reordenam toda a sociedade e implementam um projeto autobiográfico.
Por que trabalhar com imagens e com a construção visual?
É importante ressaltar que não faço uma sociologia da arte, vou mostrando quais foram as imagens importantes para a construção da estereotipia feminina. São panfletos noticiosos, obras de arte e um universo visual que não propriamente é considerado uma obra de arte. Esse conjunto de visualidades constrói uma imagem universal das bruxas, de Maria. É importante também entender as condições e os contextos das imagens, qual a função que a imagem tem naquela sociedade. O visual toca em ambiguidades que o texto não toca, e as ambiguidades são centrais. O texto tem racionalidade que a imagem não tem. No caso das bruxas, por exemplo, havia um misto de temor e atração em torno delas, e só a imagem consegue capturar isso. Por outro lado, são testemunhas, documentos e janelas para acessar esse passado e suas ambiguidades, mas também atuam sobre a sociedade, são armas simbólicas importantes. A construção da imagem da mulher passa pela construção visual. As imagens testemunham a história, mas atuam sobre a história, constroem comportamento e modelos éticos e estéticos.
A construção imagética que a senhora pesquisou coincide com o que temos hoje?
Se formos olhar na longa história, ganhamos em muitas coisas. Nos desatamos de uma série de condicionamentos sociais ainda que não temos conquistado o poder de representação política e econômica. Mas o acesso à educação, por exemplo, nos deu autonomia no nosso projeto biográfico, são pontos de partida para que outras coisas aconteçam. Na questão do feminicídio, também acho que conquistamos algo, porque não aceitamos mais como natural. Infelizmente, vivemos em um país muito atrasado, não só na questão de gênero. Claro que o nosso país é devedor de uma série de coisas, mas avançamos em não tornar essa violência natural, em reconhecer o debate e colocar em pauta, como indício da força feminina. Nunca é fácil, exige uma luta.
A senhora se identifica com alguma das imagens?
Com todas. Brinco que é a minha biografia e acho que é de toda mulher, porque somos atravessadas por essas imagens. A mulher é um ser plural. Essa trilogia é uma biografia de todas as mulheres, todas nos reconhecemos em todas elas um pouco. Elas construíram ou desconstruíram um lugar para nós.
Imagens da mulher no Ocidente Moderno
Solicitar pelo site www.isabelleanchieta.com ou pelo e-mail: contato@isabelleanchieta.com