Música

Lô Borges lança álbum concebido a distância em parceria com o irmão

Retomando a prolífica parceria como o irmão após 10 anos, Lô borges lança um disco tenso, mas tenro

Devana Babu*
postado em 05/04/2021 06:16
Isolado por causa da pandemia, Lô Borges concebeu
Isolado por causa da pandemia, Lô Borges concebeu "Muito além" a distância - (crédito: Rodrigo Brasil/Divulgação)

Aos 12 anos de idade, Lô Borges “era um garoto que amava os Beatles, os Rolling Stones e a bossa nova.” Hoje, aos 69 anos, Lô Borges ainda tem os cabelos compridos, ainda toca sua guitarra e acaba de lançar o álbum mais roqueiro da carreira. Muito além do fim está disponível nas prateleiras virtuais e traz arranjos calcados em baixo, guitarra, bateria e eventuais teclados, à moda do rock primitivo que fez a cabeça do artista na infância. “A gente quis fazer — eu, particularmente — um disco mais voltado para guitarras. Carregar um pouco a mão nos arranjos, com músicas mais vigorosas, viscerais, com bastante pulsação”, explica.

Neste “a gente” inclui-se o irmão mais velho de Lô Borges, Márcio Borges, que influenciou tanto o irmão mais novo quanto Milton Nascimento a comporem as próprias músicas e fez as letras de boa parte dos clássicos do Clube da Esquina. “Ele foi meu parceiro majoritário, o cara que me iniciou na música desde que eu tinha 12 anos de idade, e me incentivava. Setenta por cento das músicas que compus na vida são letras dele”, reconhece Lô. Juntam-se ao time Robinson Matos (bateria), Thiago Corrêa (baixo, teclado e percussão) e Henrique Matheus (guitarra). Os dois últimos coproduziram o trabalho com Lô Borges que, além de cantar, tocou violão. Paulinho Moska une-se a eles na faixa-título.

Fraternidade musical

De repente, Lô se deu conta de que, há 10 anos, não compunha com o irmão e resolveu pôr fim ao hiato. O convite foi aceito imediatamente e eles começaram a trabalhar — Lô em Belo Horizonte, e Márcio, na Serra da Mantiqueira, cada qual cumprindo sua quarentena. Lô enviava as músicas pelo WhatsApp e Márcio devolvia letras. “Não pode ser uma coisa, assim, muito tranquila. Quando as músicas começarem a chegar para você, vai ver que as músicas pedem arranjos mais vigorosos, pujantes, pesados”, disse Lô ao irmão, na época.

E as letras chegaram na medida certa. “Para você ter ideia, não tive que mudar nenhuma vírgula, nenhuma frase, nenhuma palavra, tamanho o nosso entrosamento. Ele compôs coisas que sabia que eu ia gostar”, elogia. Ter que compor a distância, novidade para alguém acostumado a se reunir pessoalmente com os parceiros, não foi empecilho para a relação engrenada que o tempo não pôde enferrujar. “Foi um processo diferente, mas sem nenhum problema, porque a gente é muito entrosado, compõe desde que eu tinha 14 anos. Fluiu muito naturalmente. São cinquenta anos de parceria. Eu não preciso briefar o cara”, garante.

Tanto peso, é claro, é uma resposta ao momento pesado que o Brasil e o mundo enfrentam. “É como se fosse um grito. Tem que dar um grito diante de tanta coisa difícil que estamos passando, do ponto de vista da política, da pandemia, da desigualdade social, do racismo. O mundo está em constante ebulição e transformação, e as coisas não estão fáceis”, avalia o músico. Mas o grito continua sendo, sobretudo, de amor e esperança. Mesmo em frente ao caos, o universo onírico e fraternal de sempre se sobrepõe, como forma de resistência. “Tanto o Márcio Borges quanto eu conseguimos endurecer sem perder a ternura”, sintetiza.

Operário da canção

“A roupagem é rock’n’roll, mas podia ser bossa nova, se eu quisesse”, afirma o prolífico compositor, que tem na canção o alicerce da produção. Apesar do acento mais roqueiro do novo álbum, nem o rock nem a bossa são novidades na discografia dele, que aprendeu violão tocando o álbum Chega de Saudade, de João Gilberto, e logo foi impactado pelo sucesso dos Beatles e dos Rolling Stones, depois por bandas como Led Zeppelin, Steppenwolf, Jimi Hendrix e Emerson Lake & Palmer, tanto quanto por Chico Buarque e a Tropicália, tudo de uma vez só. “Foi muita informação para um menino de 12 anos. Bossa Nova, Beatles, Stones e golpe militar. Ao digerir tudo isso e transformar em música, me tornei um compositor”, recorda, lembrando que foram também esses ingredientes que geraram a música do Clube da Esquina.

Apesar de uma década sem compor com o irmão, Lô Borges tem lançado discos todos os anos, com diferentes parceiros. Ele garante que tem material suficiente para lançar, pelo menos, dois álbuns por ano durante os próximos anos. “A música é meu alimento espiritual, e a composição, é onde eu me realizo como ser humano, onde eu coloco para fora minhas impressões do mundo. Projetos sempre vão existir, porque, se eu não tivesse música, aí ia ser difícil.”

Lô Borges pratica o ofício de compositor como um verdadeiro profissional, e compõe todos os dias. “Eu estou compondo música uma atrás da outra, o tempo todo, desde 2003, e fazendo discos de inéditas. Minha produção no século 21 ultrapassou, e muito, a do século 20. Tenho muito prazer em transformar algo que não existe pela manhã em uma música que, quando chega a tarde, eu escuto e penso: ‘poxa, ficou bacana’”, descreve.

Apesar da solidão e da impossibilidade de visitar os entes queridos, a pandemia intensificou a rotina produtiva do artista. “A pandemia só me deixou mais concentrado na composição, no mergulho musical da minha vida. Tem mais de um ano que eu não saio de casa, não viajo para lugar nenhum. Não estou elogiando a pandemia, mas a música foi minha única resposta possível, transformar toda essa limitação de não poder sair, ver a família e os irmãos”, explica. Aliás, para ele, a música tem sido mesmo a única resposta possível diante dos problemas do país, como os recordes de mortalidade e os leitos de UTIs esgotados. “Eu me sinto impotente diante disso. A única resposta que eu tenho para isso é continuar mergulhando na composição de músicas inéditas.”

Diante da rotina produtiva intensa, Lô não costuma escutar novos artistas. “Atualmente tenho tido pouco tempo para ouvir música que não seja a minha. Quando se está o tempo todo envolvido com a própria obra, construindo uma obra nova, não se tem tempo de ouvir outras coisas.” Que dirá ser influenciado pela produção atual: “Eu adquiri uma personalidade tal como compositor, a tantos anos, que eu me influencio pela buzina do carro, pelo barulho dos pássaros, ou por qualquer tipo de música, de discos de pessoas anônimas que chegaram a mim nos shows que eu fazia. Eu me influencio por tudo. Tudo que eu escuto começa a fazer parte do que eu gosto ou do que eu não gosto, do que eu quero ser ou não quero ser.”

Apesar do sentimento de impotência, o artista não descrê do poder da música como um bálsamo para os males do mundo. “Se eu não acreditasse nisso, não estaria fazendo e lançando discos. Acredito totalmente no poder transformador da música e da arte. Assim como me sinto feliz quando estou fazendo as músicas com meu irmão ou outros parceiros, acho que quem gosta do meu trabalho também se sente participando daquilo, se sente um pouco mais animado. O poder transformador da música é uma coisa concreta.”

*Estagiário sob a supervisão de José Carlos Vieira

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Muito além do fim

 (crédito: Deck/Divulgação)
crédito: Deck/Divulgação

Novo álbum de Lô Borges, com participação de Paulinho Moska. Deck. 2021. R$ 29,90. Também disponível nas principais plataformas digitais de música.

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