LITERATURA

Enciclopédia conta a história de negros anônimos no Brasil

Enciclopédia compila mais de 400 personagens negros que fizeram a história do Brasil nos últimos cinco séculos: muitos são anônimos e lutaram pela liberdade e pela igualdade

Nahima Maciel
postado em 07/04/2021 06:00 / atualizado em 07/04/2021 11:22
Pintura de Panmela Castro para a enciclopédia -  (crédito: Panmela Castro/Divulgação)
Pintura de Panmela Castro para a enciclopédia - (crédito: Panmela Castro/Divulgação)

Matildes era uma escrava nascida no Rio Grande do Sul em 1789. Filha de uma indígena com um africano, decidiu dar aos filhos destino outro que a senzala e fugiu. Foi atrás da liberdade, mas acabou aprisionada novamente. Joaquina Benguela depositou numa poupança na Caixa Econômica da Corte um dinheiro que guardava para comprar a própria alforria. Morreu antes de alcançar a liberdade e seu proprietário tentou sacar o dinheiro, com a desculpa de que era o autor dos depósitos. Nesse caso, não conseguiu e a quantia foi encaminhada para o Fundo de Emancipação. Natural da Guiné, Petronilha foi acusada de esbofetear a figura de uma santa e tornou-se, por isso, uma das personagens citadas em inquérito sobre uma seita religiosa conhecida como Santidade de Jaguaripe.

Sabe-se pouquíssimo sobre a vida dessas mulheres, suas datas de nascimento e de morte, mas todas elas eram parte estrutural de um sistema econômico baseado na compra e venda de pessoas e que, até hoje, impacta as sociedades do mundo inteiro. São figuras que teriam permanecido na invisibilidade, se os historiadores Lilia Moritz Schwarcz e Flávio dos Santos Gomes e o artista plástico Jaime Lauriano não tivessem lhes dedicado um verbete na Enciclopédia Negra.

Recém-lançado pela Companhia das Letras, o livro traz 416 verbetes dedicados a personagens da história da luta do negro na sociedade brasileira ao longo dos últimos 500 anos. Para compor a enciclopédia, os autores estabeleceram como critério unicamente que os personagens estivessem mortos. Há, portanto, desde nomes históricos como Zumbi e Chica da Silva; personalidades da cultura, como Pixinguinha e Chiquinha Gonzaga; personagens da história recente, como Marielle Franco e Mestre Moa; até pessoas desconhecidas cujas histórias se somam a outras muitas que engrossaram a luta contra a opressão. “Queríamos tratar do século 16 ao 21 e queríamos cobrir o Brasil em todas as suas regiões, e com uma preocupação de gênero. Há uma invisibilidade e silêncio grande em relação à população negra de maneira geral e, no que se refere às mulheres, o silenciamento é ainda maior. E por isso chamamos de enciclopédia, porque tem a tradição de ser o mais abrangente possível”, explica Lilia.

Ela e Flávio Gomes tiveram a ideia da enciclopédia quando trabalhavam no Dicionário da escravidão e liberdade, lançado em 2018. “A gente queria dar cara, alma e imaginação aos inúmeros protagonistas que fizeram parte da história do Brasil, mas foram transformados em personagens invisíveis”, conta Lilia. No entanto, muitos dos rostos dos mais de 400 nomes biografados na Enciclopédia Negra ficaram perdidos no tempo e nunca chegaram sequer a ser retratados. Lilia e Flávio convidaram, então, o artista plástico Jaime Lauriano para pensar em uma maneira de dar forma aos personagens.

A solução de Lauriano acabou por extrapolar o livro: ele convidou outros artistas plásticos negros para dar rosto aos nomes mais desconhecidos dos verbetes. No total, o livro traz 36 personagens retratados em ilustrações em um caderno especial ao final do volume, mas a produção dos artistas chegou a mais de 100, e o resultado estará em uma exposição na Pinacoteca do Estado, em São Paulo, para a qual as obras serão doadas. “Quando a gente começou a ver quem queríamos retratar, tínhamos como ponto de partida personalidades que não têm um retrato ou imagem. Com isso em mãos, fiz uma pesquisa dos artistas no Brasil equilibrando gênero, região e inserção no mercado, porque a enciclopédia é também um momento de visibilidade para os artistas”, conta Lauriano.

Grande parte das pessoas retratadas contribuíram para a luta pela liberdade, mas não chegaram a entrar para o registro da história como grandes personalidades. “Tirando o Zumbi, porque a gente queria fazer um retrato decente de Zumbi. Mas tem mulher líder de quilombo, mãe que fugiu para filhos não serem escravizados. A gente quis dar luz às narrativas que não eram tão conhecidas, mas também não só as lutas por emancipação, queríamos também colocar outras pessoas, como um palhaço, um engenheiro, para mostrar que há uma complexidade na história negra, não é só liberdade ou escravidão, há uma multiplicidade de abordagem”, avisa o artista.

O artista plástico Moisés Patrício, por exemplo, retratou Emiliano Mundrucu, nascido livre no século 19, ativista que integrou um batalhão militar como comandante em Pernambuco, mas fugiu para Boston (EUA) passando pelo Haiti. Panmela Castro pintou Catarina Cassange, escrava que passou mais de um ano fugida para poder dar à luz e manter o filho longe da escravidão. O próprio Lauriano retratou o Preto Félix, que comandou mais de 400 rebeldes durante a Cabanagem, no Pará.

Para criar o rosto do personagem, o artista se inspirou no passado e no presente. “Fui estudando a cartografia da época em que ele nasceu e viveu, e fui pegando características físicas de um homem forte e lutador. Fui fazendo também relações com as pessoas que hoje empenham essa luta, como o pessoal da Cufa, os cantores de rap, tentando fazer um personagem que trouxesse a luta daquela época, mas também espelhado na luta de hoje”, conta.

De Brasília, Dalton Paula e Antônio Obá também participaram do projeto. Paula retratou Daniel Antônio de Araújo, comandante da revolta de Viana, no Maranhão, e Obá deu cara a Chico Rei que, vindo do Congo, foi trabalhar nas minas de Ouro Preto, comprou a própria liberdade e ainda pagou pela alforria de outros escravizados.

A ideia da Enciclopédia Negra, lembra ainda Flávio Gomes, é recuperar cenários, paisagens e experiências por meio dos personagens. “Eles servem também para chegar na zona da mata mineira, no litoral da Paraíba, na fronteira com o Uruguai”, explica o historiador. Ele aponta que uma das revelações das pesquisas foi a quantidade de lideranças femininas à frente dos quilombos nos séculos 18 e 19. Boa parte da pesquisa do livro está ancorada em estudos recentes e teses de doutorados espalhadas pelas universidades brasileiras e produzidas nas últimas quatro décadas. “Esse livro só foi possível por causa dessa historiografia potente dos últimos 30, 40 anos, feita por intelectuais negros e negras que estão agendando uma maneira de entender processos históricos através de histórias de personagens”, revela.

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