Num primeiro momento, quando pensou na reunião de obras que gerou a exposição Acalantar, em cartaz na Karla Osório Galeria, a artista Alice Yura queria mesmo trabalhos que dessem uma noção de alento. Ela pensou nas próprias angústias e ansiedades, em como apaziguá-las. Artista trans, nascida no Mato Grosso do Sul, Alice leva para o trabalho suas próprias experiências e vivências, mas também tenta, por meio de suas produções, entender o mundo e a realidade. Acalantar trata desse universo, muito íntimo, mas também concreto.
Com curadoria de Carolina Lauriano, a individual reúne fotografias, pinturas, objetos e registros de performances que descortinam uma cena na qual a artista é criadora e criatura. “Através do meu trabalho tento não só pensar numa construção da minha própria vida, mas também de como minha vida se relaciona com o que está no mundo. Apesar de ter caráter biográfico, meu trabalho não está, necessariamente, construindo uma história biográfica sobre mim”, avisa.
Acalantar, para a artista, também é refletir sobre sua inserção no mundo da arte. A mostra na Karla Osório Galeria é a primeira individual de Alice em mais de uma década de trabalho. Formada em artes visuais pela Universidade do Mato Grosso do Sul, ela encara o sistema de arte como algo de difícil acesso para um artista periférico. “Sendo uma artista do interior do Mato Grosso do Sul, minha relação com o sistema é não só distanciada, mas também impedida”, lamenta. "Acredito que esse recorte de ser uma mulher trans e trazer isso pra dentro do trabalho dificultou o acesso. Hoje a gente fala em representatividade trans e visibilidade, mas quando comecei a trabalhar isso ainda não estava na pauta do dia.”
Para Alice, permitir e evidenciar questões de identidade e gênero dentro do trabalho é também um exercício para proporcionar a possibilidade de criar novas identificações com o público e com ela mesma. Em uma série de fotografias de performances, ela registra momentos nos quais combina referências histórias da arte com a ideia do que seria uma educação sobre o corpo. “Em todas as fotos estou pensando a partir do meu corpo em questões ligadas ao imaginário e questões de violência”, avisa.
Nas pinturas da série O poder e a glória, tinta acrílica se mistura a fios de cabelo tingido. É, também, um questionamento sobre o lugar da própria Alice no mundo. Artista e cabeleireira, ela sempre ouviu dos outros que seu destino como trans era inevitavelmente um salão de beleza ou a prostituição. “São pinturas abstratas que fiz no intuito de pensar de que maneira e em que momento a gente encontra esses caminhos outros, em que momento a gente se percebe assim. As pinturas trazem um pouco esse lugar de pesquisa”, conta.
As obras também refletem sobre o isolamento exigido pela pandemia. A solidão e o distanciamento se adequam bem à ideia de acalantar e à necessidade da vivência coletiva no cotidiano. “Queria fazer essa relação com esse momento, com uma perspectiva de uma vivência coletiva. Acalantar seria a possibilidade de trazer um acalmamento para essas angústias que a gente também está vivendo agora. A oportunidade de fazer uma exposição num momento como esse e no meu contexto é muito simbólica”, diz.
Acalantar
Exposição de Alice Yura. Visitação até 13 de junho, de segunda à sexta, das 9h às18h30, e sábado, das 9h às 14h, sempre mediante agendamento, na Karla Osório Galeria ( SMDB Conjunto 31 Lote 1B - Lago Sul)
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