"Esse desprezo pela saúde, nem na ditadura"

Zuenir Ventura comemora 90 anos com reedição de livro que reúne histórias de mais de cinco décadas de jornalismo

Nahima Maciel
postado em 22/05/2021 22:39
 (crédito: Bel Pedrosa/Divulgação)
(crédito: Bel Pedrosa/Divulgação)

Zuenir Ventura viu a morte de Getúlio Vargas, a violência da ditadura militar, a tortura, a censura, maio de 1968, a hiperinflação dos anos 1980, a epidemia da aids, mas nunca imaginou assistir ao Brasil passar pela situação atual. “Vivi todas as possíveis mazelas que esse país teve, agora, nunca vivi um momento em que você tinha um acúmulo de crises como esse que a gente está vivendo”, conta o autor de 1968: O ano que não terminou. “Temos crise de saúde, política, econômica. Parece que todas as crises se concentraram neste momento. Esse cinismo, esse desprezo pela saúde, isso nem na ditadura, quando houve censura e morte. Nunca vi um desprezo tão grande pela saúde, pelo próximo. É chocante, esse país, hoje, é um cemitério.”

Um dos nomes mais importantes do jornalismo brasileiro dos últimos 50 anos, Zuenir Ventura ainda se espanta com o Brasil. Prestes a completar 90 anos, ele também lamenta que a velhice seja vista como um problema em um país no qual, segundo dados do IBGE, 13% da população têm mais de 60 anos. Declarações recentes de autoridades lamentando que o brasileiro queria viver 100 anos, para Ventura, são lamentáveis. “Criticar a velhice é uma estupidez, porque a outra alternativa é não chegar lá”, diz, antes de lembrar de personagens que se tornaram históricos ao produzirem obras-primas após os 70 anos.

O escritor lembra que Giuseppe Verdi compôs Otello aos 73 e Chaplin ainda fazia filmes e filhos aos 80. “Quero ver se esses economistas todos, com a idade desses gênios, terão obras parecidas com as desses caras que viveram mais de 80 anos”, desafia. “Não chego ao ponto de dizer que a velhice é maravilhosa, tem problemas, claro. Mas sou feliz porque tenho boa saúde, tenho meus filhos, meus netos.”

Para celebrar o aniversário, a ser comemorado no próximo dia 1º de junho, a editora Objetiva vai lançar uma reedição de Minhas histórias dos outros, que vem acrescida de novos textos e da atualização de algumas narrativas presentes na publicação original, de 2005. Entre as novidades mais marcantes da nova edição, está a atualização do texto A saga de uma testemunha, no qual Ventura narra como assumiu a tutela de Genésio Ferreira da Silva, menino de 13 anos que presenciou o assassinato de Chico Mendes.

Testemunha-chave que permitiu a condenação dos assassinos, Genésio poderia ser morto se permanecesse no Acre e, por isso, Ventura decidiu, com permissão judicial, levá-lo para o Rio de Janeiro. Vítima de um trauma ainda muito jovem, Genésio deu trabalho ao longo dos anos, sucumbindo à dependência alcoólica e à depressão. Quando Ventura escreveu o primeiro texto, o rapaz vivia um de seus momentos complicados. Na atualização para a edição deste ano, Genésio estava bem e prestes a se casar. “Digo que é a história mais sofrida e difícil de contar, porque terminava para baixo, eu me perguntava onde foi que errei. Mas esse telefonema dele dizendo que estava noivo e, sobretudo, que tinha deixado de beber foi a melhor coisa. A grande história dessa edição é essa: Genésio resiste”, garante o autor.

Uma entrevista concedida pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, quando Ventura era diretor da sucursal da revista Veja, no Rio de Janeiro, também é uma das pérolas acrescentadas à nova edição de Minhas histórias dos outros. Primeiro, o jornalista não acreditou que o poeta avesso a entrevistas pedia para ser entrevistado. Achou que era trote. Depois, precisou convencer o editor de que Drummond, sim, era um grande poeta e valia a entrevista. “Drummond tinha ficado muito tempo sem dar entrevista e realmente não sei, até hoje, por que ele tinha resolvido dar a entrevista para mim”, conta.

Também merece destaque o relato sobre o encontro entre quatro Antonios de destaque: Callado, Cândido, Jobim e Houaiss. Ventura foi o responsável por conduzir a conversa que costuraria o documentário de Dodô Brandão, filmado em 1993. “Para mim, foi uma surpresa e foi muito divertido porque eram todos muito engraçados”, lembra.

Zuenir Ventura detesta escrever. Foi meio por acaso que acabou em redação de jornal e precisou de um empurrão considerável da mulher para colocar no papel 1968: O ano que não terminou. Sorte dos leitores. Minhas histórias dos outros traz encontros memoráveis do autor com personalidades brasileiras, de Glauber Rocha a Rubem Fonseca, com textos que contam momentos emblemáticos da história do Brasil.


Minhas histórias dos outros
De Zuenir Ventura. Editora Objetiva, 194 páginas. R$ 59,90.


Duas perguntas para Zuenir Ventura

O Brasil da pandemia causa espanto ao senhor?
Para mim, a aids foi uma coisa muito difícil, perdi muitos amigos, mas o que está havendo agora, as estatísticas, são 40 vezes mais mortes em um mês do que a aids, é um momento muito difícil. Sou otimista, pessoalmente estou muito feliz, mas você não pode ser totalmente feliz num país que hoje é um cemitério, nunca vi enterrarem tanta gente. Economistas e tecnocratas falam muito mal da velhice, que não é produtiva. Paulo Guedes, com aquela declaração polêmica criticando e debochando que brasileiro quer viver 100 anos... É fácil elogiar a primavera, agora o outono tem uma beleza também, quando você tem olhos pra ver.

Nesses mais de 50 anos de jornalismo, o que mais chama a atenção do senhor na maneira como se trabalha a notícia no século 21?
A gente está vivendo um momento difícil no jornalismo, com um governo que despreza, que, se pudesse, mandava fechar os jornais. As entidades jornalísticas reclamam muito de como estamos sendo tratados pelo poder, tudo é culpa do jornalismo. Eu acho que a gente vive um momento heroico, porque fazer jornalismo é muito difícil. Não só porque a realidade está muito desagradável de ler e de ver. Hoje, o emissário da má notícia é o culpado pela má notícia. Até o leitor, ou ouvinte, diz que não aguenta ver tanta miséria. Como se a gente escolhesse. Vivemos momentos muito difíceis, mas o que a gente vive hoje é difícil porque os objetos do nosso trabalho são muito ruins. O leitor reclamava muito, na época da ditadura, que a gente só dava boas notícias, mas éramos obrigados a dar, a censura cortava as más notícias. A gente vive sempre sendo culpado por alguma coisa.

 

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