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Miguel Falabella fala de cinema e da perseguição a minorias

Ao Correio, Miguel Falabella conversa sobre o novo filme em cartaz, Veneza, e os projetos da carreira depois que saiu da Globo

Ricardo Daehn
postado em 20/06/2021 09:20
Miguel Falabella e o circo montado para o filme Veneza -  (crédito: Mariana Vianna/ Divulgação)
Miguel Falabella e o circo montado para o filme Veneza - (crédito: Mariana Vianna/ Divulgação)

Aos 64 anos, o autor e diretor Miguel Falabella assume o gosto por ser disciplinado. Não fuma e não bebe, entre outros resguardos, para canalizar muito para os palcos. “Prefiro guardar a loucura para a criação, cuido muito da minha ferramenta, além do que, faço teatro musical, o que muito exige da saúde”, conta.

Num contraponto, na criação de atual destaque, como cineasta à frente do longa Veneza (em cartaz), Falabella defende uma trama com personagens afundados em luxúria e vícios. Prostitutas no enredo garantem muito erotismo à la Fellini. “É um filme de muito peito, muito decote. O erotismo vem com absoluta elegância. Poderia ter feito o filme desgraçado, com a realidade do Brasil, com essas mulheres numa tapera de pé no chão, mas preferi contar de uma maneira fabulosa”, sintetiza.

Leitor inveterado, filho de uma professora marxista e sartriana, como reforça, Miguel faz troça com a avalanche de projetos empreendidos. “Eu brinco de tudo, gosto mesmo de brincar de tudo”. Daí ter dedicado, parte do período retraduzindo parte da obra da autora Beatrix Potter, “cheia de rimas internas, no inglês, e de neologismos”, e ainda desenvolver dois projetos para a Disney+, outros dois (secretos) para cinema, além de cuidar de vídeos para plataforma educativa de streaming.
Por vezes, capitão de uma equipe de mais de 100 pessoas, em musicais, Falabella tem o lema de sempre estar feliz. “Porque, se eu não estiver, eles (os atores) não estarão felizes”. Ressabiado com política, o artista crê na política feita com o que escreve. “Faço política quando exerço a comédia da tolerância, quando faço um (a série) Pé na cova, em que cabe todo mundo e todo mundo é amado e com direito de ser feliz”.

Entrevista // Miguel Falabella


Como foi conciliar, em Veneza, linguagens de teatro, cinema e circo?

Acho que a linguagem teatral é uma brincadeira que está na sequência daquele drama feito antigamente nos circos, havia sempre a parte do drama, então eu recuperei uma coisa que é do nosso DNA. Mas, na linguagem, o filme é muito cinematográfico. Há o olhar fabuloso: traz personagens que buscam uma mítica felicidade que nem sabem o que é. Por acaso, a Gringa (personagem de Carmen Maura) sabe que a felicidade dela está em Veneza, ou ela supõe que esteja lá, num acerto de contas que ela quer fazer com ela mesma. Já o Tonho (Du Moscóvis), cuja mãe também foi uma prostituta, foi criado no bordel, e se imbui da personagem de um diretor sem o saber, sem as ferramentas necessárias, mas vai criando situações absolutamente mágicas, fantasiosas e teatrais.

Comandar a produção caprichada do filme te trouxe uma pressão forte?

Eu não trabalho dessa maneira, trabalho de maneira solar. Não sou uma pessoa que não acha que o universo conspira contra mim, muito pelo contrário. Trabalho de uma maneira muito relaxada. É o que temos? Então, vamos fazer o melhor com aquilo que podemos fazer. É um filme que escrevi 20 anos atrás. Queria e ia realizá-lo de qualquer maneira.

Como foi trabalhar com a diva do Pedro Almodóvar, a atriz Carmen Maura?

Fiquei muito honrado da Carmen ter aceitado o convite, dela ter lido o roteiro, ter se encantado. Foi muito gentil, muito participativa. É uma atriz fabulosa, sem nada de diva: ela veio da Movida Madrileña. A Carmem fez os primeiros filmes do Almodóvar.Ela é de grupo, é de turma. Ela é de palco, de teatro. Carmen fez cabaré. Já fez tudo.

Sair depois de quase 40 anos da Globo trouxe que reinvenção?

É ótimo. Imagina: quando que, nessa altura da vida, eu ia pensar que ia ter que recomeçar tudo outra vez. É maravilhoso. E tem sido tão bom, cara. Eu tenho feito tanta coisa. Sou curador criativo da Hypera Pharma. Agora estou fazendo um desenho animado. Imediatamente depois que eu saí da Globo, a Hypera me convidou para ser curador criativo. Estou escrevendo uma série maravilhosa para a Disney. Já estou com O som e a sílaba engatado, para fazer lá também. É minha peça com a Alessandra Maestrini, que vai virar uma série ao estilo de O gambito da rainha, com 10 capítulos. Estou com dois filmes aí, que eu não sei que horas que vou fazer (risos). Quer dizer, foi muito bom. Até fui no Faustão, recentemente, chorei, chorei de saudade, porque eu passei toda minha vida ali.

Como é escrever sobre mulheres? Como vê a questão do lugar de fala?

Eu sou um autor. Eu não posso não escrever, eu não posso me limitar por isso. Ou você olha para as pessoas com humanidade, ou não. Com humanidade, as pessoas existem, os meus personagens existem. Quem não estiver satisfeito passa no caixa. Entendeu? Dispenso a bobagem de quem só lê orelha de livro. Quanto à alma um pouco feminina, já está em mim, está na minha obra desde A partilha, que é o meu grande sucesso. É um olhar para o universo feminino onde necessariamente não só mulheres podem falar de mulheres, não só gays podem falar de gays, não só héteros podem falar de héteros. Todos podem falar de todos, respeitando-se as escolhas, respeitando-se as individualidades. Falo de mulher com muito afeto, com muito carinho, num olhar muito próprio. Obviamente que as minhas personagens são minhas, e diferentes. Tenho uma personagem icônica, no Pé na cova, que é a Darlene (Marília Pêra), uma maquiadora de defuntos alcoólatra. E vai dizer que não existe? Existe. Tudo aquilo que a gente imagina, existe... Infelizmente, às vezes.

O que te influencia um pouco na escrita e nas leituras mesmo?

Leio tudo, até bula de remédio. Sou voraz desde muito cedo. Nós éramos 15 primos, e eu tinha uma miopia muito séria, diagnosticada aos cinco anos. Então a minha primeiríssima infância foi num mundo absolutamente desfocado, porque eu não tinha noção. Ao notar a falta de nitidez, acabei operando, mas tarde. Sou da época do óculos fundo de garrafa, sem as tecnologias. Com a miopia, e por causa da minha mãe e do meu pai, que eram intelectuais, o maior cômodo da minha casa era a biblioteca, e eu ficava lá o dia inteiro. Assim, eu fui lendo, lendo... Sempre gostei das palavras: achei que as palavras eram minhas companheiras.


No Veneza, você traz a situação da denúncia...
Sim: um crime de ódio. Continuamos tendo o Brasil como país onde mais se mata LGBT. Nós somos um país ainda com menos avanços nessa área, avanços de entendimento. Os nossos neurônios, nossos espelhos ainda estão muito embotados. A gente precisa olhar para o próximo com mais generosidade e saber que o meu direito acaba onde o seu começa e o seu acaba onde o meu começa, e, sim, você tem o direito de fazer. Se você quiser botar uma sardinha e fingir que é sereia: It’s up to you, baby.

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