LITERATURA

Lançamentos de Jarid Arraes e Natália Borges Polesso se conectam com o agora

Livros trazem temas como violência, racismo e colapso social para a poesia e para o romance

Nahima Maciel
postado em 27/07/2021 06:00 / atualizado em 27/07/2021 10:24
Versos de Jarid Arraes refletem sobre violência e racismo -  (crédito: Arquivo pessoal)
Versos de Jarid Arraes refletem sobre violência e racismo - (crédito: Arquivo pessoal)

É um mundo de caos, em colapso, sofrido, violento e discriminatório que as autoras Jarid Arraes e Natália Borges Polesso descrevem em seus novos livros. Originárias de geografias completamente diferentes — Jarid é cearense e Natália, gaúcha —, mas com uma perspectiva compartilhada no olhar para a diversidade e a diferença, as autoras deveriam entrar para o radar dos interessados em acompanhar como a literatura brasileira dialoga com a contemporaneidade.

A voz do colapso

Natália Borges Polesso começou a escrever A extinção das abelhas em 2016. Antes, portanto, da pandemia do coronavírus. Mas a narrativa já trazia uma espécie de morte anunciada. Ancorada na observação do caos ecológico que assola o planeta há décadas, na deterioração das relações e das instituições e na maneira como a sociedade vive e entende o mundo no século 21, Natália criou o universo do romance, cuja história se passa num futuro próximo, após a pandemia, mas com esta ainda bem viva na memória.

“Viver prestando atenção nas coisas que têm acontecido fez com que essas preocupações virassem essa questão literária pra mim”, explica a autora. “Tem essa preocupação com o futuro, porque, apesar de se passar daqui uns anos, é um livro conectado com o presente e que trata dos colapsos que já estão acontecendo. Essas coisas A que a gente vem assistindo, mudanças sociais, uso de pesticidas, acidentes ecológicos, aumento de temperatura, insegurança alimentar, são coisas que estamos vivendo com mais intensidade de uns tempos para cá e que a pandemia ressaltou, talvez por isso o livro ecoe tanto.”

A extinção das abelhas é dividido em três partes, sendo que a primeira tem duas linhas narrativas. Regina mora no sul e sobreviveu à pandemia de 2020. Filha de Lupe, que fugiu com o circo e abandonou a menina com o pai quando era criança, Regina carrega um olhar muito crítico e pessimista. Ela é, como diz Natália, o colapso em pessoa. O mundo em que vive com a namorada que está prestes a deixá-la foi devastado pela má gestão ecológica dos humanos. A comida é escassa, o emprego, também, as instituições desmoronam rapidamente, a miséria se espalha e as relações humanas se decompõem ao ponto de homossexuais serem alvos já normalizados da violência.

Cada capítulo do romance tem como título uma palavra ou expressão que encerra a ideia do capítulo anterior, uma maneira de amarrar a narrativa não cronológica com a história de Lupe, mãe de Regina e personagem de camadas complexas, difícil de decifrar. Lupe nasceu de uma vontade de Natália de explorar a diversidade. “O livro trabalha a questão de como a gente entende as relações”, avisa. “Lupe é muito livre nesse sentido. Pensando arquetipicamente na personagem, eu queria alguém que tivesse um espectro dentro da neurodiversidade menos próximo do que a gente entende por normal”.

A história se encadeia de forma que fica difícil abandonar a leitura. Regina lembra o desencanto e um desespero um tanto inevitável diante do caos social, político e humanitário dos últimos dois anos. Como a personagem se sairá pode ser um prenúncio de como aqueles que estão informados sobre a situação atual se comportarão.

Natália avisa, no entanto, que não queria dar ao romance uma nota pessimista, embora ela mesma esteja mergulhada em certo desânimo. “Eu estou pessimista, e é uma luta diária tentar achar um caminho de esperança mesmo, porque é muito injusto com as pessoas que estão numa luta há muito mais tempo. E o livro é sobre isso, porque esses fins de mundo aconteceram muitas vezes, quando a polícia invade o Jacarezinho atirando em todos é o fim. Então, não posso ser pessimista e escrever um livro fatalista porque senão a gente para de tentar viver. Eu queria alguma forma de conciliação dos personagens e isso vem na forma de como a gente pode repensar o mundo, as escolhas”, diz.

Poesia

Quando Jarid Arraes começou a escrever Um buraco com meu nome, ela já sabia que os poemas seriam destinados a um único livro. “Não gosto da ideia de reunir poemas aleatórios e juntá-los, prefiro ter um direcionamento, contar uma história com o livro de poesias. Então, tudo foi feito para o Um buraco com meu nome”, avisa. “A minha maior motivação era falar sobre os temas difíceis que muitas vezes evitamos falar de forma tão crua, falar do que é difícil mexer porque é carne viva. Os temas da nossa condição humana me provocam muito, me incomodam muito, e por isso eu escrevo.”

Dividido em cinco partes, Um buraco com meu nome é um livro sobre dores. Questões humanas, existenciais, compartilhadas por todos, apesar das diferenças, pautam os versos de Selvageria, Fera, Corpo aberto, Caverna e Poemas inéditos, sessões do livro dedicadas ao que Jarid identifica como humano. “Quando não somos a fera, somos a selvageria que cria a fera, quando não estamos com o corpo aberto, estamos finalmente chegando a esse lugar que pode ser o lugar final, o lugar de conforto, de abrigo, ou de morte. A selvageria é o machismo, o racismo, a saúde mental que foi atacada, a angústia das perguntas sem resposta, a agonia de perguntar, a capacidade de reagir, ainda que seja difícil”, explica. Uma selvageria que é perturbadoramente humana.

Abuso, racismo e discriminação são ideias bastante presentes nos poemas, e, assim como a dor e a violência, engrossam o processo poético de Jarid. “a silhueta paterna assombra/os sonhos/na penumbra das metáforas/nas figuras de linguagem/na literalidade das surras/das pernas bêbadas/nas mães chorosas/roxas”, diz um verso. Jarid conta que, como mulher, já sofreu muita violência e que sabe identificar o machismo e o racismo, assim como outras formas de discriminação. Essa consciência, ela aponta, é fundamental para combater as agressões. “Eu sou uma pessoa que acredita na possibilidade de transformação da sociedade em algo melhor”, diz. “Meu pensamento era sempre voltado para as feridas sociais que temos em comum. Como mulheres, ou como pessoas negras, indígenas, asiáticas, ou como pessoas que enfrentam problemas de saúde mental, ou ainda como gente que se angustia diante do mundo e de tanto absurdo. Isso tudo está presente em todos os lugares, ao redor de todos nós.”

O título do livro nasceu antes mesmo de todos os poemas estarem prontos. A autora queria contar a história de uma mulher que vivencia a selvageria da sociedade e se torna uma fera, expõe o próprio corpo e, ao final, se depara com um buraco com seu nome. E aí, cabe ao leitor imaginar que buraco seria esse e preenchê-lo com ideias que podem ir do descanso e do alívio à morte. Versos como “desistir é coragem difícil/somos programados/para tentar” lembram ao leitor que é preciso seguir adiante. A poesia, Jarid acredita, é uma forma de encarar a dor com uma linguagem altamente expressiva. “Acho que a poesia é maravilhosa de um jeito tão gigantesco que consegue segurar toda essa dor humana e pela linguagem poética expressar aquilo que um discurso bem articulado e bem planejado não consegue expressar”, acredita.

Um buraco com meu nome

De Jarid Arraes. Alfaguara, 174 páginas. R$ 39,90

A extinção das abelhas

De Natália Borges Polesso. Companhia das Letras, 308 páginas. R$ 69,90


» Três perguntas para Jarid Arraes

A loucura e a depressão também estão muito vivas. Podemos dizer que esse é um livro forjado na dor? E como, para você, a linguagem poética recebe essas inquietações?

Sim, é um livro doloroso, que fala de muitas formas de dor, e que não sugere que a dor irá embora. Antes, é um convite para que a gente encare a dor e saiba como nomeá-la. Escrever é um trabalho cansativo, de insistência, de retorno e retorno e retorno ao que foi escrito, então, sim, escrever tem seus momentos doloridos.

Sobre o poema Parição, ele parece ter nascido da dor de uma doença. Pode falar um pouco sobre ele?

Que interessante a sua interpretação, porque ela era inédita até agora, pelo menos de acordo com o que foi compartilhado comigo. Realmente esse poema surgiu a partir das dores que eu sentia na vesícula, que estava tomada de pedras há muitos anos, e eu sempre tinha essa sensação de que a qualquer momento a situação poderia se agravar ainda mais. Achava curioso como eu podia ter tantas pedras dentro de mim e continuar funcionando.

“Aprendi naquele dia/a morte é relativa/aos olhos/prada/de quem vê”: é também um livro com crítica social?

Eu aprendo algumas faces da selvageria como os problemas sociais que vivemos. O racismo, o machismo, o descaso com a saúde mental, a pobreza, o abandono, o ódio. Eu penso que todos os livros são livros políticos, porque todos falam sobre questões sociais, a diferença é que tem gente que se recusa a aceitar isso, gente que faz e parece que nem percebe, e gente que faz de propósito. Eu faço de propósito.

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