Leveza profunda

Em Noturno, Maria Bethânia brilha com interpretações refinadas de músicas inéditas e o clássico Bar da noite, de Bidu Reis e Haroldo Barbosa

» Irlam Rocha Lima
postado em 29/07/2021 21:00 / atualizado em 30/07/2021 21:08
 (crédito: Jorge Bispo/Divulgação)
(crédito: Jorge Bispo/Divulgação)

Maria Bethânia não é apenas uma cantora. A faceta de atriz sempre se pronunciou no trabalho de uma das maiores intérpretes da música popular brasileira. Em performances no palco, ela tem domínio completo sobre aspectos como cenografia e iluminação e, mesmo quando grava um disco em estúdio, o canto tem a dramaturgia como aliada. Isso pode ser observado nos trabalhos anteriores e está presente em Noturno, álbum que chega hoje às plataformas digitais.
A Abelha Rainha precisou se adaptar aos novos formatos de mídia para ter sua voz poderosa ouvida novamente pelo público. Antes do álbum, houve o lançamento de singles com A flor encarnada (Adriana Calcanhotto) e Lapa santa (Paulo Dafilin e Roque Ferreira). Essas duas canções se juntam no repertório a outras 10 faixas, que integram o espectro de um rico universo de estilos que caracteriza a vasta obra da artista baiana.
Gravado entre setembro e outubro de 2020 e em maio deste ano, no estúdio da Biscoito Fino, no Rio de Janeiro, Noturno teve produção musical de Jorge Helder, produção artística de Ana Basbaum, direção musical e arranjos de Letieres Leite e direção geral de Kati Almeida Braga. Mesmo não sendo um disco físico, Bethânia fez questão de exibir outro dos seus talentos, ao bordar um coração para o encarte. Noturno é o primeiro projeto de inéditas de Bethânia desde Meus quintais, de 2014, embora tenha duas regravações.


» Entrevista / Maria Bethânia

Meus quintais, de 2014, foi seu último disco de estúdio. Por que decidiu lançar Noturno, agora num período tão sombrio?
Estava em São Paulo, em 13 de março (de 2020), e iria fazer um show naquela noite, que acabou sendo cancelado, em razão do surgimento da pandemia. Voltei para casa, me isolei, respeitando essa situação difícil e perigosa. Como sou um artista e estou sempre querendo fazer algo. Por mais que meu coração se entristeça, o movimento de criação mantêm-se. Como havia guardado algumas canções do show Claros breus, e foram chegando outras, resolvi entrar em estúdio, obviamente tomando todos os cuidados, e gravar um disco.

Antes do álbum, saíram dois singles, o de A flor encarnada e de Lapa santa. Você se adaptou a essas novas formas de
lançamento, por meio de singles e pelas plataformas digitais?
Não me adaptei coisa nenhuma (risos). Isso é coisa da indústria. De qualquer forma, o importante é que o trabalho chegue às pessoas que acompanham minha carreira, até porque não existem mais lojas de discos.

Entre as músicas gravadas, Bar da noite, de Bidu Reis e Haroldo Barbosa, a única que não é inédita, remete ao início de sua carreira, quando cantava em boates de Copacabana. Por que quis recriá-la?
Bar da noite eu cantava no encerramento do show Claros breus. Quis fazer o trajeto do escuro até chegar à luz. Conheço esta canção, na voz de Nora Ney, desde menina. Sou apaixonada por ela. Ela representa um grande momento do rádio brasileiro.

Embora o contrabaixista Jorge Helder tenha feito a direção musical do disco, foi sua a definição do ordenamento das músicas no
repertório?
Quem trabalha comigo sabe que não sou apenas uma cantora. Sou uma artista que precisa ter ideia geral para desenvolver; uma dramaturgia que me sustente, que me dê motivo e razão para criar tanto um show quanto um disco. Eu me meto em tudo: no repertório, na cenografia, na iluminação. Tudo passa por mim.

Em quase todos os seus discos, há músicas de Caetano Veloso. Desta vez você não o gravou, mas tem O sopro do fole, do filho dele, Zeca Veloso. Como esta canção chegou a você?
Caetano está fazendo um disco de inéditas. Isso já é uma força da natureza. Então, não precisava cantar algo composto por ele agora. Zeca me mandou essa música e diz que a compôs inspirado em mim, mas não pediu que eu a gravasse. Quis ouvi-la na voz dele, e depois de eu muito insistir, ele cantou. Aí, pedi para incluí-la no Noturno. O Zeca é um jovem artista muito delicado e talentoso.

Por que decidiu gravar duas músicas do Paulo Dafilin, músico de sua banda?
O Dafilin me enviou uma série de músicas, entre elas De onde vim e Lapa santa, essa com letra de Roque Ferreira. Gostei bastante dessas duas e achei que tinham a ver com a proposta do disco.

Músicas que trazem a religiosidade como referência sempre foram cantadas por você, e esse é o caso de Lapa santa, na qual Roque Ferreira evidencia aspectos relacionados com a gruta existente em Bom Jesus da Lapa, no sertão da Bahia. Pode ser dito que ela lhe trouxe muita emoção?
Fiquei louca por essa música desde que ouvi pela primeira vez. Não conheço aquele santuário, mas tenho uma grande devoção pelo lugar. A poesia de Roque é muito forte, muito nobre. Acho que ele tem um modo brasileiro de se expressar nas palavras que escolhe e é um grande poeta. O arranjo do maestro Leitiere Leite para Lapa santa contribuiu muito para transformá-la em algo poderoso, impactante.

Vidalita, uma canção adaptada para o flamenco, pode ser vista como uma novidade?
Ao contrário. Conheço essa música há uns 30 anos e costumo cantá-la em casa. Quando decidi fazer o disco, vi que era a hora de gravá-la.

Tim Bernardes, um dos mais festejados compositores da nova geração, é o autor da bela Prudência. Como tomou conhecimento dessa música?
Pedi uma canção para ele e recebi várias, e aí escolhi Prudência, que tem uma letra bem construída. Trata-se de um jovem artista talentosíssimo, moderno, consciente do que faz. Ele é uma das grandes revelações do Brasil na composição.

Chico César, há algum tempo, marca presença em seus discos e shows. O que o levou a conquistá-la?
O caboclinho, como o chamo, é um amor à primeira vista. Chico é um dos compositores que mais admiro, e ele está sempre mandando alguma canção para mim. Luminosidade, que gravei no Noturno, estava guardada comigo há dois anos e a quis nesse trabalho.

A positividade de Cria da comunidade foi o que lhe chamou a atenção nesse samba de Xande de Pilares e Serginho Meriti?
O samba fala de um personagem vitorioso e contrapõe com a dramaticidade de 2 de junho, de Adriana Calcanhotto. Isso é o retrato do Brasil, um misto de drama e força da vida.

Poemas de Fernando Pessoa, Clarice Lispector e Ferreira Gullar sempre entremeiam blocos de canções dos seus shows. Agora você trouxe Uma pequena luz, de Jorge Sena, para o disco. Esse poeta lhe é familiar?
Eu já tinha conhecimento da obra do Jorge Sena e pedi o Eucanaã Ferraz para me sugerir alguns poemas desse poeta, para que eu escolhesse um e gravasse. Por razões diversas, optei por Uma pequena luz.

Que avaliação faz do tratamento dado à cultura por órgãos governamentais atualmente?
Vou copiar Fernanda Montenegro. Dramático e trágico é o lugar que a cultura brasileira ocupa no momento.

Noturno

Álbum de Maria Bethânia com 13 faixas. Lançamento da Biscoito Fino nas plataformas digitais.

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Contigo na distância

Na falta de coisa melhor para fazer — essa pandemia provoca esse tipo de ócio estéril — tentou-se criar uma falsa polêmica sobre a capa do novo disco de Maria Bethânia. Muito pobre, reclamaram... Alguém chegou a estranhar que o nome do disco, Noturno, contrastasse com o branco que domina a arte, acreditando que se falava de escuridão, quando o objetivo parece ser bem outro, ao aproximar-se da singeleza dos noturnos da música erudita.

Os noturnos — especialmente os 21 compostos por Chopin — transformaram o piano que, de instrumento de percussão, alcançou a extensão da voz, a partir de peças curtas, emotivas e intimistas. O noturno de Maria Bethânia também é construído sobre temas de estrutura simples e que ganharam arranjos discretos que valorizam a voz, como deve acontecer sempre no caso de um artista de excelência.

No ambiente de recolhimento exigido pela pandemia, o disco sugere comedimento e cuidado, mas informa que é preciso ir em frente, trabalhando bem com essa sensação de contraste e rejeitando soluções simples. A instrumentação segue essa linha discreta, com esparsas cordas e nenhuma opulência; tudo é medido a partir de pequenos combos — quando não apenas um instrumento.

O disco começa com um piano a acompanhando em um antigo sucesso de Nora Ney, Bar da noite (Bidu Reis-Haroldo Barbosa) típico samba-canção de fossa — “Bar, tristonho sindicato/ De sócios da mesma dor/ Bar, que é refúgio barato/ Dos fracassados do amor”. Adiante, em Vidalita, extraída do repertório da catalã Mayte Martin, Bethânia canta apenas com o auxílio de um violão de sete cordas.

A força da voz, o drama da interpretação e a convicção musical são ressaltadas pela opção quase minimalista do disco, uma coleção de 11 canções e um poema lido, que remete aos dramas e atos que ela gravou nos anos 1970.

Noturno é um disco de canções simples embora em ritmos variados — há o xote O Sopro do fole, o samba Cria da comunidade (com participação de Xande de Pilares), flamenco, o quase bolero Prudência, e até uma balada forte, dylanesca: Dois de junho. A canção lembra a tragédia do menino recifense Miguel, morto ao cair de um edifício por causa da negligência da patroa da mãe do menino, que ganha contornos ainda mais dramáticos do que na gravação original de Adriana Calcanhoto.

Noturno é um disco de recolhimento, mas despeja alguma indignação; se falta romance, sobram tragédias pessoais, conflitos interiores, confusões privadas e outras sensações provocadas pelo distanciamento. E aí nasce o grande contraste de uma obra como essa, já que ela provoca uma hoje estranha sensação de proximidade: contigo na distância, por assim dizer.

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