CINEMA

40 anos sem Glauber Rocha lembram urgência do pensamento crítico do cineasta

Quatro décadas depois da morte, cineasta Glauber Rocha tem a obra reavivada na eterna luta da família contra o descaso destinado à cultura

Ricardo Daehn
postado em 21/08/2021 06:00 / atualizado em 21/08/2021 14:31
Glauber Rocha, em edição do Festival de Veneza: voz indignada -  (crédito: Templo Glauber/Divulgação)
Glauber Rocha, em edição do Festival de Veneza: voz indignada - (crédito: Templo Glauber/Divulgação)

Morto há 40 anos, depois de regressar ao Brasil com a saúde debilitada no exterior, o cineasta historicamente mais celebrado do país, Glauber Rocha, vê retomada a exaltação do ativo e crítico pensamento. Num momento em que parte da memória dele foi queimada na fogueira da Cinemateca Brasileira, a inquieta voz do artista teima em ecoar: o clássico Deus e o diabo na terra do sol (1964) está quase todo restaurado, com a sofisticada tecnologia do 4K.

Gestora da obra do pai, a cineasta Paloma Rocha assume os desgastes de saúde e de disposição emocional de, ao lado da mãe de Glauber (Dona Lúcia morta em 2014), empreender restauros e o reavivar do legado paterno: “Não tenho a dimensão estoica de a minha luta se renovar”.

Com a sabedoria de avó e um método intuitivo, Paloma zelou pela instituição pública Tempo Glauber, que preserva um acervo com caráter singular — toda obra permanece junta, e é dividida igualmente pelos herdeiros. Na base da intensa dedicação, foram preservados filmes do pai (restaurados até 2005), 22 mil páginas escritas (integrantes de 242 projetos, entre roteiros, peças, romances, críticas de filmes e poesia), mais de 4 mil fotografias e 3 mil cartas, além de 400 desenhos (esses, depositados no Instituto Moreira Salles). Transferido para a Cinemateca, em 2011, o material permanece íntegro.

Dedicação

“Vou tentar pelo menos salvar a obra do meu pai. É o trabalho de uma vida, né? De várias vidas (pela dedicação da avó, de Paloma e da filha dela, Sara). Aí, você acorda de manhã e pegou fogo em tudo!?”, conta, indignada. O recente incêndio da Cinemateca liquidou o material do chamado Fundo Tempo Glauber. Ainda que a produção intelectual de Glauber tenha escapado das labaredas; houve perda de materiais escritos sobre (e para Glauber), teses, documentações sobre restauro. “Foi um trabalho insano, estou abalada. Das 300 caixas acondicionadas na Cinemateca, recuperadas e digitalizadas no Tempo Glauber, 100 haviam sofrido danos na enchente de 2020. É uma perda inestimável. Existe uma humilhação reservada ao cinema brasileiro pelo fato de ele fazer refletir, pensar e criar uma realidade poética e emocionante. Estamos num mundo em que parece não querem mais que exista”, pontua Paloma Rocha.

Carinho de mãe

Dona Lúcia Rocha“Falta Luz-cia (evocada Dona Lúcia, num trocadilho) nessas trevas atuais. Que ela nos abençoe para não perdermos o acervo de Glauber que ela salvou enfrentando o exílio do filho, a morte trágica da filha Anecy, e o acidente do marido Adamastor”, demarca o diretor Joel Pizzini, por anos integrado à família Rocha, e outro guerreiro na preservação do cinema do mestre Glauber.
“Dona Lúcia é a Mãe Coragem do Cinema Brasileiro. Em torno dela, fosse na pensão que mantinha em Salvador como no Tempo Glauber (criado no Rio de Janeiro, com apoio de Orlando Senna), gravitaram tanto o Cinema Novo como uma geração de cineastas do qual faço parte. Lúcia me introduziu na era digital por meio de Abry (filme feito junto com Paloma), e dedicou sua vida à formação do Glauber e à preservação da obra dele”, explica Joel Pizzini.

Exaltando um quê “de profeta” em Glauber, Jorge Amado, pelo que conta o experiente produtor de cinema Luiz Carlos Barreto, tinha arrebatadora razão: “O Terra em transe (1967) é atual hoje, e será ainda mais, daqui a 50 anos, não só em termos de Brasil, mas de mundo”. Na visão de Barretão, a importância de Glauber, pelo pensamento nacional, extrapolava o cinema, estendida para a cultura, a política e o social. “Costumo dizer que ele morreu de patriotismo: ele sofria com os problemas brasileiros. Foi uma figura intensa e abrangente na vida de todos”, completa o produtor, com convivência que atravessou décadas, e que acolheu o amigo na casa carioca, quando vindo da Bahia para montar o longa Barravento (1961).”Glauber é o grande arauto do cinema brasileiro até hoje. É de uma importância extraordinária, sendo absolutamente impecável. Como artista, é um dos maiores do mundo. Foi uma felicidade conhecer e conviver com ele, aos 18 anos. Ele trouxe uma lembrança e uma presença de grande amor para mim que a nossa filha Paloma, além dos descendentes que chegaram a trazer bisneto. Para mim, ele é uma presença importantíssima, na minha vida, na forma de admiração intelectual e afetiva”, sublinha a atriz e cineasta Helena Ignez, aos 79 anos.

Integridade

Na data dos 40 anos da morte de Glauber (demarcados, amanhã), Paloma Rocha percebe que a difusão da obra traz robusta visão para o futuro, dada a atualidade e o ineditismo. “O que é dito chega como aula de história permanente. Ele expressou uma sabedoria de tratar de miséria, colonização e de luta de classe. Falou da violência contra pobres, negros e índios. Nisso há relevo. Minha luta, na preservação, é silenciosa porque, para poder caminhar com o Glauber e a obra dele nesse país com tantas vaidades, sempre fizemos o trabalho de maneira muito particular, e pelo Tempo Glauber” reforça a herdeira, ciosa da autonomia, independência e determinação. Pesam na preservação da memória, investimentos (eternamente de patrocínio escasso) e aplicação de tecnologia “O acesso sistemático à obra digitalizada é um projeto que empreendo, para fazer um grande portal. Tudo para o acesso a documentos, 50 mil itens que estão digitalizados”, conta.

Com uma filosofia apregoada pelo pai (“Só fale da sua vida pessoal com quem dorme com você ou ajude a pagar suas contas”), Paloma sempre cuidou de um pedido do pai: “Nunca me mitifique”. “Gosto de destacar, no meu pai, a coragem e a lucidez, o amor com dedicação. Na verdade, Glauber era um sertanejo, o homem preocupado com a família, com seu país, com as injustiças, preocupado com miséria e a fome, preocupado com a colonização cultural. Ele tinha um amor incondicional ao próximo que estivesse acometido de injustiças. Era implacável com pessoas que considerasse inimigas. Com coragem e lucidez, ele tinha uma necessidade de dizer a que veio, e disse”, conclui Paloma.

» Depoimentos

O que lembro do Glauber?
Glauber tinha fascínio por Brasília: ele gostava muito. Tinha amigos nessa cidade. Eram poetas, jornalistas, tinha o Rogério Duarte (poeta e artista gráfico), o Reynaldo Jardim. Lembro do Glauber falar muito do editor do Correio Braziliense (Oliveira Bastos, à época), e escreveu textos importantes para o Correio, com um grafismo inusitado, reinventando palavras. Depois, filmamos parte de A idade da Terra aí, e Eryk Aruac (Eryk Rocha), nosso filho, nasceu em Brasília, no meio da filmagem. Lembro de Glauber como um pai carinhoso, grande interlocutor de ideias, artista de extrema generosidade que compartilhava seu saber com todos. Ele ofereceu sempre o melhor de si para a família, os amigos, o Brasil e o mundo. Pensava além do si próprio, pensou o coletivo, um humanista antes de mais nada. Pensador, conectando o mundo a suas ideias, jamais acima dele, sempre caminhando em conjunção com a história do seu povo. Pensamento que permanece vivo entre jovens, e muito presente neste momento.
Paula Gaitán, esposa do diretor, entre 1976 e 1981

Balança desequilibrada
Olha, eu aprendi tudo que sei de cinema com o Glauber Rocha. Ele descobriu em mim uma possibilidade de ajudá-lo a fazer filmes. Ao mesmo tempo, era uma pessoa de convivência muito agradável e insuportável (risos). Só falava sobre a humanidade e sobre o problema da fome no mundo: era tudo permanente. Isso o angustiava muito. Não relaxava para um papo furado. Aquilo foi exaurindo a ele, que tinha uma consciência do talento muito forte dele, e ficava bem irritado com o fato de as pessoas não reconhecerem isso direito, como ele achava que deveria ser. Trabalhávamos sempre ao contrário: eu queria relaxar e o levava na esportiva. Isso ele curtia em mim. Eu não levava o personagem (Glauber) muito a sério; gostava da pessoa, nem tanto do personagem (risos). No Cabeças cortadas (1970), Glauber exacerbava a falta de perspectivas da América Latina, a fome, a miséria, a corrupção, isso tudo igualzinho: com um ditador latino-americano representado. Terra em transe (1967), para mim, tem uma importância muito grande. Foi o filme a que eu mais me dediquei. Exerci todas as profissões: fui produtor, ator, coadjuvante, assistente, boy e motorista.
Zelito Viana, produtor de Terra em transe

Rigor
Glauber não só foi o melhor e mais importante cineasta de um momento extraordinário do cinema brasileiro, como também costumava defender esse momento com muito entusiasmo e rigor. Todo mundo se lembra disso e quer estar à altura do que ele pregava.
Cacá Diegues, cineasta

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