Os sabiás modernistas

Antologia organizada por Augusto Massi lança um novo olhar sobre a crônica de Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta e José Carlos Oliveira

Severino Francisco
postado em 16/11/2021 00:01
 (crédito: Paulo Garcez/Divulgação)
(crédito: Paulo Garcez/Divulgação)

O título Os sabiás da crônica (Ed. Autêntica) pode sugerir mais uma antologia saudosista sobre os tempos áureos do gênero no Brasil. Ela reúne um time de craques, formado por Rubem Braga, Vinicius de Moraes, Fernando Sabino, Stanislaw Ponte Preta e José Carlos Oliveira. Mas, na verdade, a coletânea nada tem de sessão nostalgia. O organizador do livro, o poeta, editor e professor da Universidade de São Paulo (USP), Augusto Massi, nos empresta novos olhos para ler os clássicos do modernismo, com uma alentada apresentação e com uma seleção de textos que parecem escritos especialmente para a atualidade dramática que vivemos. Trazem lições de resistência, de coragem, de sabedoria, de alegria e de humor para enfrentar tempos obscurantistas.

O ponto de partida para a antologia foi uma foto dos sabiás, tirada por Paulo Garcez, na cobertura de Rubem Braga. O livro reúne 90 crônicas, 15 de cada autor, cobrindo o período de 1930 até 2004, data da morte de Fernando Sabino. Não deixa de ser uma homenagem aos 100 anos do modernismo, pois a antologia abre uma trilha inovadora de interpretação sobre a história da crônica moderna. Entre as preciosidades, há uma crônica inédita de Rubem Braga sobre Noel Rosa, em que o capixaba sentencia com toda a autoridade de sabiá decano: "Vendo essas letras eu me pergunto se Noel não foi tanto quanto sambista, um cronista e um poeta".

O título Os sabiás da crônica sugere mais uma celebração no gênero sessão nostalgia. O que buscou com essa antologia?

É exatamente o inverso da sessão nostalgia. Eu quis trazer um espírito irreverente, de humor, de crítica espirituosa para contrapor ao período em que estamos vivendo. Se você olhar, esses cronistas enfrentaram a ditadura do Estado Novo, o golpe de 1964, o AI-5 e o longo período de ditadura militar. Mas escreveram crônicas hilariantes, com risco de vida. O código final não é a denúncia; é a frente ampla de inteligência e de humor atacando o regime. Gregório Duvivier lembra Stanislaw Ponte Preta. Inclusive, na antologia, tem uma crônica belíssima de Rubem Braga sobre a Bidu Sayão cantando no Recife. Braga vê uma placa do Joaquim Nabuco falando da abolição e diz: "Precisamos de novas abolições". A minha intenção era recuperar uma dimensão histórica, com muita densidade, sem perder a leveza. Voltamos a quadros semelhantes, mas esses cronistas nos ensinam que temos de manter os prazeres da vida, cultivar a amizade, não podemos nos deixar intimidar nem com a pandemia.

E, por falar em amizade, tem aquela famosa história sobre Fernando Sabino, Rubem Braga e Paulo Mendes Campos, que tomam crônicas emprestadas uns dos outros, as requentam e publicam novamente. É uma atitude modernista?

Isso é muito importante tanto pela relação de amizade quanto pela atitude modernista. A crônica é um gênero ligado ao mercado, mas eles subvertem o profissionalismo com a brincadeira de reescrever a mesma crônica. Tem outra crônica, O crime perfeito, do Rubem Braga, que não entrou na antologia, mas é muito inventiva. Braga publicou com seu nome uma crônica de Carlos Drummond de Andrade, mas não ganhou nada, usou o dinheiro que recebeu para pagar ao rapaz que a digitou. São saídas bem-humoradas do modernismo, é um profissionalismo antiprofissional. No caso, plagiar não deixa de ser uma homenagem.

Em que medida, os sabiás constituíram um grupo articulado e não apenas uma foto de circunstância?

Quando a (editora) Ana Amélia me convidou, me deu como mote a foto do Paulo Garcez. Eu tinha feito a apresentação de crônicas parisienses de Rubem Braga. Como professor da USP, dou vários cursos sobre crônica. Acompanho a crônica paulista de Mario Prata e de Fabrício Corsaleti. À medida que fui pesquisando, percebi que tinha de recontar algumas coisas. Não era só um grupo de mineiros. Os sabiás constituem um grupo formado por dois cariocas, dois capixabas e dois mineiros. Eles publicaram livros na Editora do Autor e na Editora Sabiá. Isso reforçou a ideia de grupo. Saíram de uma parceria e estabeleceram uma aliança de cronistas e poetas-cronistas, mas sempre com muita liberdade estética. A receita de feijoada de Vinicius de Moraes é muito diferente da receita de feijoada de Rubem Braga.

Quais as diferenças entre a primeira geração de modernistas para a dos sabiás da crônica?

Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Cecília Meirelles e Carlos Drummond fizeram uma crônica quase ensaística. Todos eles tinham muita erudição. A geração dos sabiás também era erudita, tinha bagagem literária e experiência de vida. Mas eles estabelecem uma relação ainda mais estreita com as classes populares, falam da história do samba e do futebol. Vinicius afirma que queria ser Ciro Monteiro. A crônica deles acompanha e ilumina o que é particular. Um homem na rua, a paisagem vista da janela, a conversa de bar, a borboleta amarela, o pássaro. É uma crônica mais livre, mais próxima da fala, essa é a grande conquista da crônica dessa geração modernista.

Qual a importância da Editora do Autor e da Editora Sabiá para a consolidação da crônica como gênero literário no Brasil?

Tirei uma informação do livro A crônica brasileira no século 19 - Uma breve história. Ele diz que, naquela época, a crônica não era reconhecida como literatura. A tese que defendo é a de que, com 10 anos de atividade, as duas editoras fixaram a crônica como gênero importante. Em 1977, Antonio Candido escreveu o prefácio para uma antologia e disse que esses autores colocaram a crônica em outro patamar de qualidade.

Rubem Braga produzia em crônica momentos de poesia que provocavam inveja em Carlos Drummond e Manuel Bandeira. Por que ele não alcançou o mesmo nível alto quando escreveu poesia em verso?

Olha, tem alguns poemas que eu gosto muito. Há um poema que está próximo da crônica dele, A morte de Divina. Tem outro muito bonito que fala da Rua do Catete. Rubem Braga tentou primeiro como poema. Depois, virou crônica. Ele percebia que tinha uma matéria lírica nas mãos. A crônica dele tem um prosaísmo da poesia modernista, praticada pelo Drummond, pelo Vinicius. Rubem Braga é um dos caras que mais organizou antologias. Então, acho que ele conseguiu extrair dessas leituras as vigas-mestras da crônica, consegue ser lírico e não derramado. Tem uma contenção no Braga que é um exemplo para os poetas e para os cronistas. Ele é, aparentemente rude, mas terno. Quando fala da natureza não é exagero usar a palavra ternura para nomear essa relação. O erótico sobe um pouco em cada frase. Quando parece crescer, ela quebra, oculta coisas. O desenho do texto dele tem o erotismo da onda do mar, de dobrar-se sobre si mesmo.

Como se situam Stanislaw Ponte Preta e José Carlos Oliveira neste grupo?

Eles são de passagem de uma cultura do livro para uma cultura de massas. Os dois primeiros livros de Sérgio Porto (Stanislaw) fazem referências diretas a Manuel Bandeira. Ele elaborava esquetes para shows musicais, tinha um pé na cultura de massas, mas encontra uma voz pessoal para criticar essa cultura, a máquina de moer. Já Carlinhos Oliveira representa a era do "sonho acabou", o desbunde com a repressão, a defesa do amor livre e o cerceamento do governo militar. Ele teve de forjar uma nova linguagem para expressar essa experiência conturbada.

Como o exercício da crônica afetou a produção dos grandes escritores modernistas?

O Drummond incorporou gírias na poesia dele. Clarice Lispector fez muitos exercícios ficcionais nas páginas dos jornais. Ferreira Gullar escreveu belas crônicas. Aproximou os escritores dos leitores. Eu defendo a crônica como um espaço muito importante nos jornais.

O que os sabiás têm a nos ensinar neste momento?

Eles criticavam, combatiam, mas com esclarecimento. Não me parece boa a tendência atual de apontar o dedo. A crônica é uma rua de mão dupla, ajuda a estabelecer o trânsito do centro para a periferia. Isso é uma riqueza. A aliança entre os poetas e os cronistas deve continuar.

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Trechos

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“No Teatro Santa Isabel há uma placa de bronze com uma frase de Nabuco: “aqui vencemos a abolição”. Mas não vi nenhum negro no recital. Os negros e os brancos pobres – o enorme povo – não entra ali. Para ele estão fechadas as portas de todos os altos bens da vida humana. Velho Nabuco, há muitas abolições a fazer ainda.”
Rubem Braga em Reflexões em torno de Bidu

“Que prazer mais um corpo pede/Após comido um tal feijão?/– Evidentemente uma rede/
E um gato para passar a mão.../Dever cumprido. Nunca é vã/A palavra de um poeta... – jamais!/
Abraça-a, em Brillat-Savarin/O seu Vinicius de Moraes”
Vinicius de Moraes em Feijoada à minha moda

“Éramos três condenados à crônica diária: Rubem no Diário de Notícias, Paulo no Diário Carioca e eu no O Jornal. Não raro um caso ou uma ideia, surgidos na mesa do bar, servia de tema para mais de um de nós. Às vezes, para os três. Quando caiu um edifício no Bairro Peixoto, por exemplo, três crônicas foram por coincidência publicadas no dia seguinte, intituladas respectivamente: “Mas não cai?”, “Vai cair” e “Caiu.'”
Fernando Sabino, em O estranho ofício de escrever


“Como um poeta tocado por um anjo, como um compositor seguindo a melodia que lhe cai do céu, como um bailarino atrelado ao ritmo, Garrincha joga futebol por pura inspiração, por magia, sem sofrimento, sem reservas, sem planos.”
Paulo Mendes Campos, em Mané Garrincha

 

“Quem tem razão é Tia Zulmira, quando diz que, se Vinicius de Moraes fosse um só, não seria Vinicius de Moraes, seria Vinicio Moral”.
Stanislaw Ponte Preta, em Os Vinicius de Moraes

“Nasci brasileiro: que é que eu posso fazer? Sou brasileiro por fatalidade, temperamento e voca-ção. Um dia a cegonha me jogou aqui nesta porcaria de país, e eu tive que ir crescendo aqui mesmo.”
José Carlos Oliveira, em Meu inimigo artificial

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