Literatura

Distopia e pandemia pautaram literatura brasileira e mundial em 2021

Autores brasileiros trouxeram as catástrofes climáticas e pandêmicas para a ficção em livros publicados em 2021. Racismo e ciência também estão entre os temas da literatura durante o ano

Nahima Maciel
postado em 03/01/2022 06:20 / atualizado em 03/01/2022 08:40
 (crédito:  Carlos Macedo/Divulgação)
(crédito: Carlos Macedo/Divulgação)

A pandemia e suas consequências dominaram a ficção produzida pelos autores brasileiros este ano. Entre distopias catastróficas e biografias de gente fundamental para a tecnologia das vacinas usadas contra a covid-19, os reflexos do vírus que matou mais de cinco milhões de pessoas no mundo desde janeiro de 2019 afetaram oficialmente a produção de 2021.

Na leva de contemporâneos brasileiros, a distopia aparece em quatro romances que são também leituras de uma sociedade simpática ao fascismo e ao negacionismo. Em O riso dos ratos, Joca Reiners Terron imagina uma terra arrasada na qual seres humanos viram mercadoria. O texto sugere um futuro distópico, ao mesmo tempo em que recupera um passado bem conhecido dos brasileiros em encontro mórbido no qual a escravidão torna-se o futuro de uma sociedade destroçada.

Perplexidade

O Brasil pós-pandêmico está em O último gozo do mundo, de Bernardo Carvalho, e em A extinção das abelhas, de Natália Borges Polesso. Caos ecológico, deterioração das instituições e uma sociedade em colapso embalam o romance de Natália, escrito antes da pandemia, mas publicado apenas este ano. "Viver prestando atenção nas coisas que têm acontecido fez com que essas preocupações virassem essa questão literária pra mim", explicou a autora, em entrevista concedida em julho, quando o livro foi lançado.

Bernardo Carvalho prefere o gênero fábula para descrever o romance no qual uma professora de sociologia que escreve livros sob pseudônimo empreende uma jornada em direção a um retiro em um país despedaçado. Em entrevista, o autor contou que a perplexidade diante da pandemia e, sobretudo, a maneira como o governo federal conduziu a crise sanitária, fizeram parte das motivações para escrever o romance.

Daniel Galera foi outro que também trouxe a pandemia para a ficção em O deus das avencas, um conjunto de três novelas cuja trama decorre em tempos e situações diferentes. Na primeira, uma mulher passa por um trabalho de parto doloroso no mesmo dia em que o Brasil se prepara para eleger um presidente de extrema direita. O contraste entre o nascimento carregado de esperança e a aproximação de um cenário macabro se cruzam no sofrimento da parturiente.

Em outra novela, Galera propõe uma fantasia com seres híbridos que tentam sobreviver em meio a uma natureza perturbada pela ação humana e em modo de quase vingança. A terceira história se passa em futuro não muito distante no qual os humanos são capazes de armazenar a consciência após a morte. "Muito dessa ficção que está se produzindo agora tem esse afã de imaginar mundos diferentes e se contrapõe à literatura produzida pela minha geração, que se voltava muito para o indivíduo, para o mergulho no ego, na individualidade", explicou Galera, em entrevista ao Correio.

Racismo

Distante do mundo distópico, quatro livros chamaram a atenção da crítica ao longo do ano pelo tema tratado e pelo excepcional exercício de linguagem. O racismo e suas consequências conduzem O avesso da pele, de Jeferson Tenório, ganhador do Prêmio Jabuti. Escrito com diversas vozes narrativas, o romance acompanha a história de Henrique narrada pelo próprio filho. Professor de literatura, negro, o personagem tem a vida atravessada pelo racismo e pela violência. Aos 43 anos, ele mesmo professor de literatura, Tenório acredita que a representação do negro na literatura contemporânea brasileira mudou nos últimos 10 anos graças à presença maior de autores negros no mercado editorial. Para ele, além do maior acesso às universidades, contribuíram para esse cenário um certo esgotamento de narrativas de autores do Sudeste e capitais e uma demanda por ficções que falassem de racismo. O livro ganhou o Prêmio Jabuti na categoria melhor romance de 2021.

Celebrada pelo domínio da experimentação da linguagem, Micheliny Verunschk deu voz a duas crianças indígenas em O som do rugido da onça. No século 19, dois exploradores alemães desembarcam no Brasil com a missão de estudar o país e retornam a Munique com duas crianças para serem exibidas como seres exóticos. As crianças morrem, mas, antes, também narram seu martírio em um texto banhado em lirismo. O livro de Verunschk é um dos destaques do ano, ao lado do perturbador Vista chinesa, de Tatiana Salem Levy, no qual a personagem, vítima de um estupro, escreve sobre o trauma em uma carta na qual reflete sobre a vergonha e o medo do julgamento alheio após a violência. Ainda na lista de descobertas do ano, Erva brava, da brasiliense Pauliny Tort, traz o cerrado para o centro da narrativa com personagens resilientes que lutam contra o apagamento. Buriti pequeno é a cidade fictícia na qual se passam as histórias dos 12 contos que refletem sobre o avanço da urbanização em um cenário rural.

Lançamento deste final de ano, Essa dama bate bué!, de Yara Nakahanda Monteiro, e Anos de chumbo, de Chico Buarque, merecem a atenção do leitor. No primeiro, a autora portuguesa de origem angolana mergulha numa narrativa em busca de raízes com a história de Vitória, nascida em Angola, criada pelos avós em Portugal e filha de uma guerrilheira desaparecida durante as guerras de independência. A personagem deixa tudo para trás e vai em busca do próprio passado: entender o que aconteceu com a mãe que nunca conheceu é também compreender a si mesma. Num livro de contos extremamente bem amarrados, Chico Buarque traz o Brasil para a ficção e não poupa o leitor da violência na qual o país anda mergulhado: desigualdade, extremismos e ódio são ingredientes das narrativas.

Não ficção

Entre os destaques de não-ficção, há assuntos urgentes, como a vacina contra a covid-19 e as mudanças climáticas, mas também temas essenciais para compreender presente passado e futuro. Laurentino Gomes lançou Escravidão Volume II - Da corrida do ouro em Minas Gerais até a chegada da corte de dom João ao Brasil, uma análise detalhada e contundente sobre a escravidão no Brasil e no mundo no século 18. O autor dedicou o primeiro volume à maneira como o tráfico de escravos se organizou na África. Agora, no segundo, ele investiga como as sociedades escravocratas se organizaram e se construíram em cima de um pilar macabro e degradante.

Assuntos atuais pautaram Bill Gates em Como evitar um desastre climático: as soluções que temos e os avanços de que precisamos, que traz as sugestões do bilionário para combater o efeito das mudanças climáticas. Também tem raiz na conjuntura A decodificadora, biografia que Walter Isaacson dedica à cientista Jennifer Doudna, que encabeçou a pesquisa responsável pela criação de uma ferramenta capaz de editar o DNA. O CRISPR, hoje usado em centenas de laboratórios de pesquisa, foi fundamental para criar as vacinas contra a covid-19 baseadas em DNA.

 

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