Luto

O rebelde elegante

Atuante em diversas frentes de ativismo, o ator negro mais associado à quebra de preconceitos raciais, Sidney Poitier, morreu aos 94 anos

Ricardo Daehn
postado em 08/01/2022 00:01
 (crédito:  MGM/Divulgação)
(crédito: MGM/Divulgação)

Agente divisor nas águas turvas ou mesmo na corrente escancarada do racismo norte-americano, o ator e ativista Sidney Poitier morreu, aos 94 anos, depois de contribuir, por mais de 70 anos, na luta pelos direitos civis da população negra. Nascido em Miami, em 1927, Poitier nunca perdeu de vista a herança paterna do taxista e plantador de tomates que o criou, nas Bahamas, em meio à pobreza e absoluta singeleza. Efetivamente, ele se dedicou, de modo assumido, ao que agregasse positividade e honra na vida do pai. Conhecido por se tornar o primeiro ator negro premiado com o Oscar, Poitier teve passado de auxiliar de hospital militar norte-americano, nos anos de 1940, e foi lavador de pratos, antes de testes impulsionarem os estudos no American Negro Theatre, um passaporte para a Broadway.

Com o ator Harry Belafonte, Poitier foi uma voz ativa na sociedade norte-americana, tendo inclusive, sido premiado pelo presidente Barack Obama, em 2009, com uma medalha que personifica a liberdade. Fluente em russo, foi doutor pela Shippensburg University (Pennsylvania), em 1974, Poitier foi elevado à condição de cavaleiro honorário da Coroa Britânica. Em posição diplomática, por uma década, ele chegou a ser representante das Bahamas no Japão.

Pai de seis filhas, muitas delas ligadas às atividades artísticas, até 1990, além de ator, Poitier apostou numa carreira de cineasta, que lhe rendeu oito filmes. Loucos de dar nó (1980) e Hanky Panky — Uma dupla em apuros (1982) foram rentáveis apostas cômicas, que traziam em cena talentos como os de Gene Wilder e Richard Pryor. Foi, porém, na frente das câmeras que Sidney Poitier se tornou um modelo de homem de alta civilidade, frontalmente combatente de preconceitos raciais. Numa das falas cristalizadas do clássico No calor da noite (1967), o personagem dele, um detetive quase desautorizado por um xerife preconceituoso, brada o modo respeitoso pelo qual sempre atendeu: "Eles (todos) me chamam de Senhor Tibbs!".

Para se dimensionar o impacto de Sidney Poitier em Hollywood, basta se ater a um dado: a Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, que aponta tesouros do cinema dignos de serem preservados, traz sete filmes com o ator, numa lista montada mediante aspectos "culturais, estéticos e históricos" que os títulos carregam. O alcance do astro de filmes como Porggy & Bess (1958) e Atirando para matar (1988) é tamanho a ponto de o filme Seis graus de separação (1993) trazer adaptação de uma peça em que um impostor alega ser filho do icônico ator.

Quebra de sigilo (1992), oito anos antes da aposentadoria nas telas, foi dos últimos sucessos do lendário ator, que, em cena, ao lado de River Phoenix, sustentava, na trama, uma dose de rebeldia contra controle governamental. Desde o despontar da carreira, quando foi notado em O ódio é cego (1950), Poitier já propunha um discurso que extirpasse preconceitos: no enredo, viveu um doutor que serve incondicionalmente a um paciente detestável. Entretanto, foi a presença no longa Sementes da violência (1955), do renomado Peter Brooks, que cravou um marco, na trama em que um professor enfrenta a realidade de alunos indisciplinados.

Anos mais tarde, o próprio coadjuvante daquela fita encabeçaria Ao mestre, com carinho (1967), no qual viveria um docente de inglês que mantinha o trato idealista, mesmo diante da gritante rebeldia dos estudantes. Curiosamente, em 1995, veio a segunda parte do sucesso, com direção do prestigiado Peter Bogdanovich (morto na última quinta-feira).

Outra imagem altamente exaltada de Sidney Poitier foi projetada com o retrato do ex-soldado sulista que, pacífico, convive harmonicamente com cinco freiras empenhadas na construção de uma simbólica capela, em Uma voz nas sombras (1963). Foi o filme pelo qual o ator obteve o Oscar de melhor ator, pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas.

Quatro anos mais tarde, Adivinhe quem vem para o jantar, o filme que deu estatueta para a gigante atriz Katharine Hepburn, integrada com Spencer Tracy ao retrato de um casal conservador, foi expressivo na carreira de Poitier que vivia um noivo discriminado pela cor da pele. Na linha progressista, Poitier ainda estrelou, para Martin Ritt, Um homem tem três metros de altura (1956), em torno da amizade inter-racial entre estivadores novaiorquinos, que desemboca em tragédia.

O expurgo de muitas questões raciais ainda envolveu fitas como o romântico Quando só o coração vê (1965), no qual o personagem de Poitier interfere na rotina abusiva para a personagem cega de Elizabeth Hartman, e ainda em O sol tornará a brilhar (1961), pelo qual repetiu papel da Broadway derivado da investida da dramaturga Lorraine Hansberry em uma família negra que não consegue se ver feliz, ao adotar parâmetros de sucesso para brancos. O filme rendeu uma indicação ao Globo de Ouro de melhor ator.

Muito antes de estrear na direção, nos anos de 1970, em que arregimentou Bill Cosby para comédias como Aconteceu num sábado (1974) e Aconteceu outra vez (1975), Sidney Poitier, ainda em fins dos anos 50, contracenaria com um parceiro que mudou o curso de sua carreira: Tony Curtis. Em Acorrentados, libelo de aceitação e tolerância, dois presidiários que se odeiam se veem presos por correntes, numa longa jornada de fuga.

Derrotados na disputa pelo Oscar, Curtis e Poitier ao menos celebraram as vitórias do ator negro: além do importante Bafta, ele faturou o Urso de Prata no Festival de Berlim. Além dos prêmios, pela carreira, atribuídos em frentes como o Oscar, o Globo de Ouro e o Sindicato dos Atores, Poitier deteve prestígio apenas equiparado ao do astro Gary Cooper, numa aprofundada avaliação do respeitadíssimo American Film Institute.

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  • Em 2002, Sidney Poitier recebeu um Oscar honorário, pelo conjunto da obra em cinema
    Em 2002, Sidney Poitier recebeu um Oscar honorário, pelo conjunto da obra em cinema Foto: AFP
  •  Adivinhe quem vem para jantar (1967)
    Adivinhe quem vem para jantar (1967) Foto: Columbia/Divulgação
  • No calor da noite (1967)
    No calor da noite (1967) Foto: United Artists/Divulgação

Brilho parcial

Mesmo com um turbulento 2021 e uma nova onda de covid em 2022, o Globo de Ouro segue sem alteração de data e vai revelar os vencedores da edição deste ano. A premiação de televisão e cinema tem como principais destaques os filmes Ataque dos cães, e Não olhe para cima, além das séries Succession, Round 6 e Ted Lasso. O anúncio está marcado para às 23h do domingo, horário de Brasília.

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