Literatura

Teresa Montero lança biografia com materiais inéditos sobre Clarice Lispector

Teresa Montero lança biografia monumental, repleta de materiais inéditos, que traçam um novo retrato da escritora

Severino Francisco
postado em 16/01/2022 06:01 / atualizado em 18/01/2022 19:40
 (crédito: Editora Rocco/ Acervo da família )
(crédito: Editora Rocco/ Acervo da família )

Quando se aproximava do centenário de Clarice Lispector, a editora Rocco propôs a Teresa Montero, professora e pesquisadora universitária, reeditar a biografia Eu sou uma pergunta, publicada em 1999. Teresa trabalhava na equipe que preparava a edição de Todas as cartas. A função dela era fazer notas e a apresentação da correspondência de Clarice. Logo em seguida, estourou a pandemia. Animada pelo instinto implacável de pesquisadora, no intervalo de 31 anos entre a publicação da primeira biografia e o ano do centenário de Clarice, Teresa garimpou os arquivos públicos e fez inúmeras descobertas. Resolveu, então, incorporar Eu sou uma pergunta, mas escrever um novo e monumental livro, com 750 páginas: À procura da própria coisa - Uma biografia de Clarice Lispector.

O livro elucida, desmistifica e amplia a visão sobre a família, a formação, o processo de criação e a obra da escritora. Revela uma entrevista de Clarice concedida ao jornalista Araken Távora,veiculada na TV E; apresenta documentos dos órgãos de segurança do governo Dutra e do SNI sobre o ativismo social da escritora e registra um perfil em 3x 4: "A bondade é uma forma de inteligência", diz Clarice. Ou sobre o sucesso: "O sucesso é uma gafe, é uma falsa realidade. Simplesmente não tenho compromisso com o sucesso". E, nesta entrevista, Teresa Monteiro fala sobre as descobertas que delineiam um novo perfil de Clarice Lispector: "Quis mostrar que esse trabalho é uma rede, ninguém faz nada sozinho, para que o leitor tenha noção do que é o processo de busca do pesquisador".


Entrevista /

Teresa Montero

Que materiais novos? Por que a decisão de inserir no livro a pesquisa primária quase em estado bruto?

Do início ao fim, nas quatro partes, sempre uso material inédito. De todos, considero a entrevista de Clarice a Araken Távora, o material mais precioso, porque é um registro audiovisual. Ninguém se perguntou: será que não tem outra entrevista da Clarice? Não é possível que só exista a da TV Cultura. É assim que as pesquisas avançam, quando você vai aonde ninguém foi. A entrevista foi inserida no documentário Clarice Lispector: A descoberta do mundo, da diretora pernambucana Taciana Oliveira (do qual sou corroteirista) que estreou no 16 Festival de Cinema Latino-Americano, em São Paulo, em dezembro. Encontrei fichas da polícia política no governo Dutra de 1950 e ditadura militar em 1973. Nos temas da vida-vida, como por exemplo, no cotidiano da família Lispector, pela primeira vez, mostro que, durante cinco anos, o pai dela viveu no Rio de Janeiro e conviveu com a comunidade judaica na Praça Onze.

Que descobertas mudam a visão sobre o processo de criação de Clarice?

Descobri que Clarice publicou dois capítulos de A paixão segundo G.H. na revista Senhor. Os depoimentos de Clarice são de que o romance teria sido escrito de um jato só. Mostro que não é bem assim. Redesenho o processo de criação dela e abro para a questão literária, pois Clarice dialogou intensamente com outros artistas. Se criou uma visão de que a Clarice não sofreu influência de ninguém. Mas o diálogo dela com Maria Bonomi e Marli Oliveira mostram que a obra dela é fruto de um intenso diálogo com outros artistas. Ela precisava do outro sim. Escreveu A paixão segundo G.H. depois de ficar cinco anos sem produzir um livro.

Clarice foi considerada por muitos, durante largo tempo, uma mulher alienada das questões sociais brasileiras. A partir de suas pesquisas, é possível concluir que Clarice era uma mulher alienada?

Veja bem, há muito tempo, eu ficava indignada quando alguém levantava esse tipo de hipótese. A obra dela mostra o oposto; e a postura pública também desmente isso. Quem tinha alguma dúvida, saiba que ela foi fichada, durante o governo Dutra e durante a ditadura militar de 1964. Nunca ouvi um depoimento de amigos dizendo que ela foi perseguida. Essa marca de ser russa era aterrorizante nos governos Vargas e Dutra. Os intelectuais e artistas eram fichados. O curioso é como os órgãos de segurança falam dela. Havia um mapeamento de como ela se comportava na passeata dos 100 mil. Em suas colunas, ela ousava entrevistar figuras como Ferreira Gullar ou Antonio Callado, visadas pela ditadura militar. No filme da Taciana, Marina Bonomi dá um depoimento de que Clarice ajudava, submarinamente, segundo suas palavras, pessoas perseguidas pela ditadura. Como é possível chamar essa mulher de alienada?.

No que essas descobertas podem ajudar a esclarecer aspectos pouco elucidados da vida e da obra de Clarice?

O estudo biográfico lida com o aspecto histórico, a inserção no tempo, na época. Sempre ajuda a compreender mais aquela escritora no tempo em que ela viveu. Cada época é uma época, a recepção em 1940 é uma, hoje é outra. Ele pode trazer para o leitor os bastidores de como essa personalidade se constrói. Faço isso no capítulo intitulado Clarice diplomada mineira. Mostro como foi fundamental a amizade dela com Hélio Pellegrino, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos e Otto Lara Resende. Os mineiros invadiram o Rio de Janeiro. Drummond foi para o ministério da Educação de Gustavo Capanema. Sempre é preciso considerar a genialidade dela, mas, também, com quem ela se relacionou. Por que, algumas vezes, uma pessoa genial não acontece? Porque ela não caiu em um ambiente cultural que enseje o desabrochar dessa genialidade. Clarice teve um ambiente cultural favorável, laços de amizade, que a acolheram. As cartas dela falam muito sobre isso.

Na biografia que escreveu, Benjamim Moser sustenta a tese de que a mãe de Clarice teria sido alvo de violência sexual e que esse acontecimento teria afetado Clarice de uma maneira profunda. O que as suas pesquisas revelam sobre o episódio?

Agora, no capítulo da Arvore genealógica, esclareço isto. Moser levantou uma tese como certeza. Esse foi o equívoco dele. Os argumentos que ele usou não dariam para usar como certeza, mas como hipótese. O único documento que tinha era o depoimento da pesquisadora canadense, Claire Varin, autora de uma tese sobre Clarice defendida em 1986. Mas que ele colocou como nota de rodapé no livro sem identificar quem concedeu o depoimento a Varin. Por quê? E não inseriu no corpo do texto. Foi um erro metodológico. Na época, coloquei um ponto de interrogação sobre essa história. Mas, em 2011, a Folha de S. Paulo publicou um depoimento da pesquisadora, contando que quem relatou o fato sobre a mãe de Clarice foi Olga Borelli, grande amiga de Clarice. Ao tomar conhecimento disso recentemente, mudei a perspectiva, pois há o depoimento de uma pesquisadora.

Clarice se tornou uma personagem citada e que faz sucesso na internet.
É possível imaginar que ela ficaria
feliz de viralizar?

Ela tinha muita resistência ao sucesso. Cito no perfil uma das definições dela: "O sucesso é uma gafe". Ela fugia disso porque isso é uma armadilha. Recebia cartas nas quais leitores diziam que ela mudava a vida deles. Ela gostava de carinho dos leitores. Mas a fama a assustava. A internet assumiu uma dimensão gigantesca. Acho que ela teria dificuldade de lidar com isso. Preferia permanecer anônima, não tinha nada a ver com celebridade. Clarice tem vários níveis de texto. A paixão segundo G.H., por exemplo, exige mais maturidade. Para ela, entender não era uma questão de compreensão racional, mas de sentimento. De tocar ou não tocar. O texto de Clarice te chama para várias leituras. Ganha com a releitura.

Qual o impacto da leitura dos textos que Clarice escreveu sobre Brasília em você e na percepção sobre a cidade?

Fui a Brasília umas três ou quatro vezes. Já conhecia os textos, reli por ter estado em Brasília. A percepção que ela coloca corresponde muito a como eu vejo da cidade. Para quem não vive em Brasília, tem uma série de mitos. Primeiro, o vínculo com a política. Outra é a construção da cidade, aquele momento rico do Brasil, como JK, Niemeyer, Lucio Costa, Burle Marx. Por causa da Clarice, li muito sobre Brasília, sou fascinada pela história da capital. Ela visitou a cidade no início, captou o espírito de Brasília. Voltou em 1974, o Brasil era diferente, dominado por um regime de exceção, ela aponta o clima da época nas entrelinhas. Adivinhou Brasília. A sensação de estar em Brasília é muito estranha, é a de estar em um lugar ainda inexplorado. 

 

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  • Teresa Montero ao lado do busto da escritora Clarice Lispector, no Rio 
de Janeiro.
    Teresa Montero ao lado do busto da escritora Clarice Lispector, no Rio de Janeiro. Foto: Daniel Ramalho/Reproducao
  • Foto inédita de Clarice Lispector (lenço na cabeça) na Passeata dos Cem Mil em 1968
    Foto inédita de Clarice Lispector (lenço na cabeça) na Passeata dos Cem Mil em 1968 Foto: Editora Rocco/ Acervo Manchete
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