Literatura

Poesia completa de Emily Dickinson ganha segundo volume

Tradutor da obra, Adalberto Müller fala sobre a aventura de traduzir, pela primeira vez em língua portuguesa, a 'Poesia completa de Emily Dickinson', uma das vozes mais originais da poesia moderna

 Severino Francisco
postado em 30/01/2022 06:00 / atualizado em 30/01/2022 17:14
Emily Dickinson: poeta norte-americana inovadora -  (crédito: Reprodução)
Emily Dickinson: poeta norte-americana inovadora - (crédito: Reprodução)

A ideia de traduzir, pela primeira vez, a poesia completa da norte-americana Emily Dickinson (1830-1886), uma das vozes mais originais da lírica moderna, surgiu nos tempos em que Adalberto Müller fazia pós-doutorado na Universidade de Yale, nos Estados Unidos, em 2013. Em março, ele pegou um ônibus com destino a Amherst, cidade universitária onde Emily nasceu. Visitou o Museu Emily Dickinson e, imediatamente, traduziu um poema. Comprou umas edições baratas e foi traduzindo. Em 2014, tinha mais de 100 poemas e queria fazer uma antologia.

Em 2015, quando já estava com 300 poemas traduzidos na bagagem, foi a um congresso em Paris quando encontrou a americana Cristianne Müller, que apresentou nova edição crítica das obras completas de Dickinson, mas para o leitor comum. Nunca havia visto nada igual. Ficou tão fascinado que resolveu traduzir todos os poemas. Para Adalberto, só é possível compreender alguns aspectos da escrita da poeta norte-americana com a perspectiva de toda a obra.

A faina resultou na publicação de Poesia Completa de Emily Dickinson, em dois volumes, numa coedição da Editora Universidade de Brasília e da Unicamp, perfazendo mais de 1.600 mil páginas. Com poucos versos, Emily propõe claros enigmas poéticos, ricos em ritmos, cores e sugestões. Adalberto é poeta e professor de teoria da literatura na Universidade Federal Fluminense. E, nesta entrevista, ele fala da aventura de traduzir a obra completa de Emily para a língua portuguesa, que ele compara ao trabalho de verter Em busca do tempo perdido, de Proust.

Entrevista / Adalberto Müller

Como avalia as traduções anteriores da poesia de Emily Dickinson no Brasil e por qual caminho optou depois de ler essas versões?

Claro que quando resolvi traduzir comecei a ler as edições disponíveis. A de Aila Gomes, em coedição da Edusp e Queiroz Editores, sempre foi a minha referência. Já conhecia as de Augusto de Campos e de Manuel Bandeira. A de José Lira, da Iluminuras, é competente. Mas fui vendo que, por mais competentes que sejam as traduções de Lira, não consigo abrir o livro sem certa tristeza, porque não há nenhuma relação entre a vida de Emily Dickinson e a poesia dela. Aquilo me incomodou. Não é o único. É um modelo de antologia, que pode ser bom e funcionar para alguns poetas, mas não para outros. A da Aila e do Augusto de Campos seguem alguma cronologia. O prefácio do Augusto é importante, ele é um grande crítico. Do ponto de vista da forma, o meu ideal de tradução era Augusto de Campos. Cada uma das 80 traduções dele é uma joia. Mas eu queria entender a totalidade da obra dela, produzida ao longo de 35 anos. Então, tem fases e momentos muito distintas. Tem os fascículos, os poemas tardo-românticos e os da década de 1870, absolutamente modernos. Para isso, é preciso ter a visão completa da obra.

Como se explica o surgimento de uma poeta tão original em um ambiente do século 19 tão (aparentemente) limitado e cerceado para as mulheres?

O surgimento de uma poeta mulher não era uma coisa estranha à época dela. As mulheres ocupavam um papel fundamental na literatura. Se pegar a Jane Austen, as irmãs Bronté, Elisabeth Brown, a poeta que Emily mais lia e gostava. Elas faziam muito sucesso e vendiam muitos livros. Existia um lugar para as mulheres. Entre 1858 e 1865, Emily fez de tudo para ser publicada por grandes editores. Thomas Wentworth Higginson, Samuel Bowles (editor do Springfield Republican, jornal de circulação nacional), Thomas Niles (editor da Robert Brother Press). Eram editores das revistas literárias mais importantes da época. Eles recusaram, de certa maneira queriam convencê-la ou talvez seduzi-la. A Emile era lésbica, não estava interessada. Com a dificuldade, criou uma rede de pessoas para quem mandava poemas por carta. E, por acaso, eram pessoas muito influentes na vida cultural americana. Não é que fosse um gênio, mas o que escrevia não interessava aos contemporâneos. Se interessavam por temas femininos, a mulher queria emancipação, mas escrevia sobre as florezinhas, as doçuras da vida doméstica, a comida, a religião. Era uma poesia absolutamente doméstica e domesticada. Emily escreve que Deus não existe, quer entender o que é o tempo, a eternidade, duração. Ela leu A origem das espécies, de Darwin, conhecia física e astronomia. É óbvio que não correspondia ao que se esperava dela. Foi contemporânea do Emerson e do Walt Whitman, que não souberam valorizar o que ela produzia. Escreveu poemas que os homens deveriam estar escrevendo, incomodou.

Qual o segredo e o encanto da poesia de Emily Dickinson?

Não sei se saberia dizer. Lembro que, sobretudo entre 2016 e 2018, traduzia diariamente, sem feriado ou férias. Traduzia no lugar do mundo onde estava, inclusive no próprio quarto de Emily. Algumas vezes, eu ficava muito comovido, pois percebia que algum poema ou verso provocava uma emoção eterna. Vejo que, como Dante, Drummond, Proust, Shakespere ou Dostoiévski, ela faz parte dos escritores cuja obra não tem limites. Ele falou sobre tudo. Os grandes escritores têm essa capacidade de fazer da obra um grande universo.

Ler Emily Dickinson é fácil?

Não, não é fácil nem mesmo para o leitor de língua inglesa. Ela é adotada nas escolas, mas continua estranha e tão difícil quanto ler Mallarmé. Mas quando você descobre os poemas, ela fica fácil.

Emily mencionou o Brasil em alguns poemas. Qual a visão que ela tem do Brasil?

Não se trata apenas de menção. Publicarei, em breve, um artigo em Oxford, intitulado Dickinson latina, geografia imaginária. A poesia dela está cheia de referências geográficas. Só do Brasil tem quatro poemas. Fala da Bolívia; e de Buenos, são três vezes. Fala do vulcão de popocatépeti do México. Fala do timboraço, vulcão do Equador, que ela compara com o amor. Estudou com um dos maiores geógrafos do século 19, Edward Hitchcock, especialista em vulcões. O americano médio não sabe onde fica o Brasil. Ela sabia, escreveu sobre a Índia, lugares como Timbuktu, no Mali. Ela tem um poema que diz que a nossa memória é como a areia cobrindo a cidade de Timbuktu. Tem noção geográfica avançada e usa como informação cultural. Ela sabia que havia uma visão paradisíaca do Brasil, mas sabia que o país estava relacionado ao pau brasil e à indústria têxtil. Tem um poema em que conversa com um grande mercador, quer alguma coisa e oferece o ser. O mercador, que pode ser Deus, responde: o Brasil é demais para você. O mercador está vendendo o Brasil em forma de corante. É fantástico como ela pensa o Brasil metafísico do Eldorado, mas também o produtor de matéria prima para a indústria têxtil do Hemisfério Norte.

O que colher no jardim de poesia de Emily Dickinson?

É fascinante, ultimamente, seguindo a Marta Werner, que estuda os pássaros, tem um site, Emily Dickinson Birds, em que localiza 450 pássaros na poesia dela. Da mesma maneira é possível pensar todas as flores de Emily Dickinson. Ela tinha uma relação profunda com a jardinagem. E era também excelente cozinheira. O único prêmio que ganhou foi o segundo lugar de melhor bolo. Além de cozinheira, era jardineira. Recentemente, o Museu Emily Dickinson reconstruiu o jardim dela tal como ele era. O prazer feminino é pensado a partir das flores. Não é assunto novo, é novidade como ela trata da sexualidade lésbica. A polinização é uma espécie de gozo da flor e da abelha. Por outro lado, ela vê também nelas a imagem da morte. Sexualidade em conexão com a morte é algo muito freudiano. O poema que a Ana Cristina César traduziu, é lindo, diz que quem está morrendo precisa de pouca coisa, amor, basta um vaso de flores. Adoro essa tradução, a minha é apenas uma referência a ela. Flor é amor e morte. A nossa edição da poesia completa de Emily Dickinson pela editora UnB tem duas capas, que fazem referências a flores. No volume 1 aparecem essas margaridas cruzadas são Emily e a cunhada Susan. Já no segundo volume tem uma flor que se chama india pipes monotropa. É uma flor que nasce à noite, sem a presença do sol. Nos últimos anos de vida, ela se identificou muito com essa flor fantasma, que floresce no escuro, que vive na morte. Tinha o desejo que se a sua obra fosse publicada, essa monotropa aparecesse na capa. Ela escreveu dois poemas pensando nisso. As edição de 1890 tinha essas pipes. A flor fantasma é a própria Emily Dickinson.

 

Poesia completa de Emily Dickinson, Dois volumes/Ed. Universidade de Brasília e Editora Unicamp
Tradução de Adalberto Müller


Trechos

Uma Hora de espera — demora —

Se o Amor se perde de vista —

A Eternidade — é só um instante —

Se o Amor compensa a conquista —

&&&

Quem morre pede pouco, Amor,

Um Copo d'água basta,

A Face duma Flor, pontuando

A Parede, discreta,

Um Leque, um Remorso de Amigo,

E aquele Saber de cor

De não ver cor no Arco-Íris

Quando você se for —

&&&

Não pedi outra coisa —

Nenhuma outra — foi negada —

Ofereci o Ser — ao Poderoso

Mercador — que riu de lado —

Brasil? — girando um Botão —

Sem me dar nem um olhar —

"Dona — não teria outra coisa

Que a Gente Lhe possa — mostrar"?

&&&

É mais branco que a Monotropa -

é mais fino que um Laço —

Sem estatura, como a Bruma

Se você entra em seu espaço -

Nem uma voz aqui o implica

Ou por lá o intima —

Que função terá o Ar?

Essa ilimitada Hipérbole

Cada qual será um dia —

É Drama — se Hipótese

Não há que seja Tragédia

 

 

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  • Crédito: Editora UnB. Capa do livro Poesia completa Emily Dickinson, volume II.
    Crédito: Editora UnB. Capa do livro Poesia completa Emily Dickinson, volume II. Foto: Editora UnB
  • Crédito: Editora UnB. Recorte da imagem de uma flor na Contra Capa do livro Poesia completa Emily Dickinson, volume II.
    Crédito: Editora UnB. Recorte da imagem de uma flor na Contra Capa do livro Poesia completa Emily Dickinson, volume II. Foto: Editora UnB
  • Adalberto Müller
    Adalberto Müller Foto: Credito:Manuel Müller
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