Estreias

Filme de Ceilândia está na programação do Festival de Cinema de Berlim

Um dos mais importantes festivais do mundo terá a presença de produções do Centro-Oeste, e até do cinema de Ceilândia

Ricardo Daehn
postado em 10/02/2022 10:34 / atualizado em 10/02/2022 10:45
 (crédito:  Leo Lara/Universo Producao)
(crédito: Leo Lara/Universo Producao)


"Em uma favela nos arredores de Brasília, mulheres se apossam de um oleoduto para vender petróleo no bairro. Uma mistura de observação documental, filme de gângster e ficção científica, em que atores amadores interpretam versões de si mesmos". Esta é a descrição do filme feito em Ceilândia e dirigido por Adirley Queirós (em coautoria com Joana Pimenta), que está na programação do Festival de Berlim. A mostra internacional começa hoje e se estende até o próximo dia 20. O longa chamado Mato seco em chamas está integrado à mostra Fórum da 72ª edição do festival alemão, sempre dotado de viés político.

Em entrevista recente ao Correio, enquanto retrabalhava ajustes no filme, que tem quase duas horas e meia de duração e encampa coprodução com Portugal, Adirley, sempre lembrado pelo premiado Branco sai, preto fica (2014), descreveu o impulso na carreira: "O que motiva a fazer esses filmes acho que ainda é, acima de tudo, o encontro com as pessoas, o encontro com os personagens que são os personagens da minha juventude, da minha infância — daquele meu rolê em Ceilândia: das esquinas, dos campos de futebol e dos tempos que passei desempregado".

Selecionado para a mostra Fórum (dedicada a filmes experimentais), Mato seco em chamas terá sessões a partir de 14 de fevereiro. Protagonistas de dia a dia anônimo na Ceilândia, mulheres como Joana Darc, Léa Alves e Andreia Vieira serão vistas e ouvidas na telona do evento, que trará obras de diretores consagrados como François Ozon e Paolo Taviani e estrelas como Sigourney Weaver, Isabelle Adjani e Juliette Binoche — perante júri presidido por M. Night Shyamalan (O sexto sentido) e integrado pelo cineasta, formado em arquitetura pela Universidade de Brasília (UnB) Karim Aïnouz.

Entre outros filmes nacionais, Berlim exibirá Manhã de domingo (de Bruno Ribeiro), alinhado na disputa dos curtas-metragens, enfocando o destino de uma pianista assombrada pela morte da mãe, e Se hace camino al andar, de Paula Gaitán, vencedora de troféus Candango no 46º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. Um dado interessante, no evento em Berlim, está na origem de filmes nacionais, com realização no Centro-Oeste. Dois anos depois de Vento seco (do catalano Daniel Nolasco) chegar a Berlim, Rafael Castanheira Parrode levará o curta O dente do dragão (a ser exibido amanhã) para o segmento Forum Expanded.

"Nos últimos cinco anos, filmes goianos integraram seleções de festivais internacionais como Locarno, Mar del Plata e Cinéma du Reel. Houve um processo natural de amadurecimento da produção local, bem como um atestado da sua diversidade estética", ressalta Parrode. Ele embasa tudo, sob a observação de que tudo é desdobramento das políticas de regionalização (datadas de 2015) que possibilitaram o redirecionamento de recursos para o audiovisual do Centro-Oeste e das demais regiões menos favorecidas por políticas públicas.


O filme O dente do dragão tende para o abstrato, numa colagem radical de imagens que demarca a construção de Goiânia, tomada por símbolo da modernidade. "E vem a constatação do fracasso civilizatório desse modelo que culmina com o absurdo da tragédia do césio-137 (em 1987). Essa relação dialética e crítica com os arquivos e suas memórias, de uma maneira ou de outra acaba nos conduzindo ao presente e, por consequência, ao futuro, então acho que há atualidade no filme", explica o diretor.

A tragédia do césio-137 foi percebida, in loco, por Parrode, quando ele tinha 6 anos. Os avós paternos dele moravam no Setor Aeroporto, muito próximo de onde aconteceu tudo. Isso mantém a memória do cineasta bem viva — "e ela chega em forma de pesadelo e de assombro". Há sete anos, Parrode desenvolve um roteiro para longa-metragem sobre o tema. "Para quem é de Goiânia, a tragédia do césio é parte do nosso inconsciente e imaginário. A radiação ainda corre, invisível, pelas ruas da cidade. Goiânia é uma cidade que nunca soube lidar com seus traumas", pontua. O dente do dragão segue, na contramão, de dados de denúncia, entretanto. "O que me interessa é situar o espectador no meio de um furacão de imagens contaminadas para que ele se contamine também", descreve.

Mais Goiás

Bárbara Colen, em Fogaréu
Bárbara Colen, em Fogaréu (foto: ArtHouse/Divulgação)

Dia 15 de fevereiro, o Festival de Berlim mostrará outro título de raízes goianas: Fogaréu (de Flávia Neves), estrelado por Bárbara Colen (de Bacurau e da novela Quanto mais vida, melhor!), estará na mostra Panorama — que, no passado, deram visibilidade para longas nacionais como Ex-pajé, Que horas ela volta? e A última floresta. Com o filme, Flávia trata de reminiscências de um passado colonial. "Espero que as pessoas sejam tocadas pelo filme. Acho que o Brasil mudou muito, desde que comecei a desenvolver o filme, em 2014. Mas acho que a perspectiva que é possível se ter, a partir de Goiás, não mudou muito", diz a diretora goiana.

Formada pela Universidade Federal Fluminense e com estudos na Escuela Internacional de Cine y TV (Cuba), Flávia mergulha, com o enredo do filme, em questões familiares (que conhece) da personagem Fernanda que, em visita feita a tio endinheirado da Cidade de Goiás, conecta mazelas do agronegócio às origens: nisso, alcança a exploração do serviço de pessoas neurodiversas, trabalhadores muitas vezes motivados apenas pelo pagamento que supre moradia e alimentação.

Com visão sobre ator e direção modificada pela técnica Meisner, aprendida com o professor Stephen Bayly, Flávia se viu influenciada desde o roteiro até a direção, no filme de estreia dela. Ponto importante na trajetória em cinema está na solidificação das mulheres no mercado do audiovisual, fator a ser observado em Fogaréu, que emprega muitas mulheres. "Espero contribuir para que o mercado se acostume com a nossa presença, que nos respeite, sem que tenhamos que ser a cópia de um homem, que entenda e acredite na nossa forma de fazer as coisas, para que não tenhamos obstáculos a mais, além da enorme dificuldade que já é fazer um filme", reforça.

 

Cena do filme Mato seco em chamas
Cena do filme Mato seco em chamas (foto: Oublaum/Divulgação)

Três perguntas // Gustavo Vinagre


A ser exibido no segmento Forum, o longa Três tigres tristes, de Gustavo Vinagre, expõem amores inconclusos numa trupe de amigos que vaga por São Paulo. No meio da pandemia, há latente invisibilidade para os personagens centrais: um estudante, um rapaz que explora erotismo (em meios virtuais) e um parente desse.

Que recado acha que passa, na projeção de Três tigres tristes, no exterior? Há viés político?

O recado político é claro: o governo Bolsonaro destruiu a cultura e o cinema nacional. Meu filme é fruto de um último suspiro das políticas públicas voltadas para o audiovisual. Em 2020, ano em que eu também tinha um filme no Festival de Berlim (ou Berlinale), havia outros 19 longas-metragens brasileiros. Este ano, 2022, há apenas três. Esse número drasticamente menor é a prova do desmonte provocado pelo fascismo no poder. Eles acabaram com o Ministério da Cultura! A presença de um país em um evento cultural com a importância da Berlinale fala diretamente do poder de um país, do poder de falar de si próprio, de gerir suas próprias imagens, de contar suas histórias para o mundo... Esse poder está claramente enfraquecido, e os governantes deveriam se envergonhar.

Que cenário ambiciona a geração atual?

Não posso falar por toda uma geração. Mas acho que o que está claro é que todos ansiamos pelo fim do mundo como ele existe hoje, e acredito que não há volta atrás para esse fim: que é o fim do patriarcado, o fim de relações de poder desproporcionais, o fim do poder do Estado sobre os corpos e o que fazemos com os nossos corpos, o fim das violências preconceituosas. O governo Bolsonaro é um último suspiro, uma tentativa desesperada desse velho mundo para continuar no poder — e por isso tão descabida e radical, pois é puro desespero diante do próprio fim.

Você luta para que o cinema brasileiro provoque escândalo? Que retorno coleta com teus filmes?

Eu não luto por escândalo algum. Luto pela liberdade de expressão, por falar de coisas em que eu acredito. O escândalo é a violência do Estado, a desigualdade social, o descaso com a cultura, o racismo estrutural, sermos o país que mais mata pessoas LGBTQIA+ no mundo todo, a fome que voltou a assolar o Brasil, termos uma família de milicianos parasitas no poder (e a falta de revolta contra isso), a conivência das instituições com um golpe de estado midiático que arrancou uma presidente do poder.

 

Morte no Nilo
Morte no Nilo (foto: Walt Disney/Divulgação)
 

Crítica // Morte no Nilo ###


Difícil não se render a tantos elementos de atração: um filme baseado em obra de Agatha Christie, ao custo de superprodução (US$ 90 milhões), e precedido pelo mesmo condutor do bem-sucedido Assassinato no Expresso do Oriente (2017), o eficiente diretor Kenneth Branagh (que desponta no Oscar 2022, com o drama Belfast). Morte no Nilo estreia hoje nos cinemas da cidade. O cenário é deslumbrante e contempla o patrimônio mundial egípcio dos templos de Abul-Simbel, locações na cidade de Gizé e o impacto de uma equipe de cinema com mise-en-scène distante da pandemia (o filme foi rodado em 2019), e que circulou livremente por Assuã.

"Ah! O amor... não é seguro", detecta o infalível detetive Hercule Poirot (o próprio Branagh), ao entregar muito da temática de um suspense que recobre a lua de mel do casal — lindíssimo, na tela, mas sem a química necessária: Linnet (Gal Gadot, de Mulher-Maravilha) e Simon (Armie Hammer, antes dos escândalos sexuais que assolam sua vida). Tudo — traição, crime e clima novelesco — tem o bom embalo no roteiro de Michael Green (de Blade Runner 2049).

Com impecável direção de arte, que representa o front belga na Guerra em andamento em 1914, acopla um salto para a Londres de 1937 e ainda o trânsito no navio de luxo Karnak, Morte no Nilo destrinça um jogo com amostragem de personagens, em ambiente luxuoso, que exalta preconceitos e vaidade, com direito ao blues defendido pela Salome (Sophie Okonedo). Vale a pena assistir.

 

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  • Mato seco em chamas
    Mato seco em chamas Foto: Oublaum/Divulgação
  • Morte no Nilo
    Morte no Nilo Foto: Walt Disney/Divulgação
  • Gustavo Vinagre, cineasta
    Gustavo Vinagre, cineasta Foto: Rafael Rudolf/Divulgação
  • Flávia Neves, diretora do filme Fogaréu
    Flávia Neves, diretora do filme Fogaréu Foto: Arquivo Pessoal
  • Bárbara Colen, em Fogaréu
    Bárbara Colen, em Fogaréu Foto: ArtHouse/Divulgação
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