A Semana de 22 foi um marco simbólico, mas o modernismo estava infiltrado na cultura e na sociedade brasileira muito antes e décadas depois do evento que reuniu Mário, Oswald e Anita no Municipal de São Paulo. Da formação das favelas cariocas e da publicação de revistas com projetos gráficos arrojados no início do século 20 à tropicália e à arquitetura de Oscar Niemeyer, o modernismo brasileiro não é um, e sim vários.
É para mostrar um pouco como essa ideia de modernidade respinga pela história do Brasil no século 20 que o historiador da arte Rafael Cardoso escreveu Modernidade — Arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. "A meta é contribuir, com mais um estudo de caso, para o esforço coletivo de investigar a modernização cultural como fenômeno histórico disperso e diverso", explica. A modernidade se instalou no Brasil muito antes de 1922 e é praticamente consenso entre historiadores que o correto é falar em modernismos, no plural. "O desejo de modernização artística e cultural já estava implantado no Brasil quando o pessoal de 1922 chegou e se apossou dessa ideia. Os artistas eruditos se apossaram de um processo que já estava francamente deflagrado na cultura midiática popular na década de 1910", avisa Cardoso.
O pesquisador explica que o Brasil é um caso excepcional porque o modernismo artístico erudito desembarcou no país depois de estar deflagrado na mídia e as revistas culturais do início do século 20 são bons exemplos desse cenário. "A coisa mais forte é esse aspecto da imprensa ilustrada, do design gráfico, o que podemos chamar de uma cultura midiática. Isso estava em expansão na década de 1900 e tinha atingido patamar de disseminação nacional na década de 1910. Revistas como Fon Fon e O Malho já tinham uma pegada completamente moderna muito antes de isso ser encampado por um discurso erudito."
O pesquisador lembra ainda que a Semana de 22 teve uma importância muito relativa até 1942, quando Mário de Andrade deu uma famosa palestra na qual renegou a Semana no Municipal. "A Semana foi reinventada a partir de 1945. E essa reinvenção não tem nada a ver com 1922 e tem tudo a ver com o Estado Novo, com a redemocratização", defende. "O mito da Semana foi criado entre 1945 e 1972, quando foi o cinquentenário da semana. E o mito virou uma verdade inquestionável. As pessoas passaram a tratar a semana como um fenômeno que transformou a história do Brasil. Mas em 1922, a semana não teve o impacto que a historiografia atribui a ela."
Modernidade — Arte e
imagem, raça e identidade
no Brasil, 1890-1945
De Rafael Cardoso. Companhia
das Letras, 366 páginas. R$ 99,90
» Entrevista / Rafael Cardoso
Quando começa e quando termina o modernismo no Brasil, na sua opinião?
Para mim, não terminou. O que começou no século 19 ainda não terminou. Estamos em outro momento da mesma discussão que é o que quer dizer essa modernização tecnológica em relação ao cultural. É um processo grande e longo. Até hoje, como bem sabemos neste momento bolsonarista, discute-se liberdade individual. A pessoa querer ser diferente da norma e questões identitárias estão em discussão até hoje. Na pré-modernidade não havia essas discussões. Há um movimento hoje de querer retroceder ao pré-moderno. São embates históricos que têm forças contraditórias. No século 20, entendíamos como forças progressistas e conservadoras. Hoje, essas posições são forças que querem manter as coisas como são ou reverter a como eram anteriormente e forças que querem mudar.
Com o modernismo passamos a querer ser mais brasileiros?
A questão do nacionalismo é complicada. O modernismo de 1922, prinipalmente na vertente de Mário de Andrade e Anita Malfati, é extremamente nacionalista, defende uma ideia ressentida de cultura brasileira como oposta à cultura europeia. A antropofagia quer englobar a cultura europeia, é o oposto. O Brasil tem também um legado europeu, não é um país puramente indígena. Formou-se aqui uma cultura híbrida. Então quando as pessoas pensam nacionalísticamente ou a favor do indígena ou contra a Europa, é complicado porque o Brasil não é isso, é misturado. Essa ideia de tomar o modernismo como oposição nacionalista à cultura europeia é problemática até porque o modernismo europeu é internacionalista, prega a ideia de que a modernidade está acima do nacionalismo, das identidades, em prol da busca de uma identidade nova.
Uma das críticas que você faz é que o modernismo não combateu o colonialismo? E quanto aos índios e negros?
O anticolonialismo entra no modernismo com o movimento antropófago. Foi uma das primeiras vezes no mundo que se utilizou a expressão mentalidade colonial. Antes, ao contrário, o modernismo de 1922 é também uma cultura de importação, importando ideias parisienses do moderno. O que quis dizer é que os agentes modernistas de 1922 eram uma elite querendo impor uma ideia, um modelo cultural que não necessariamente se aplica à situação brasileira. Em nome do modernismo, eles pregam um nacionalismo, mas não querem modernizar as relações sociais no Brasil. São agentes de elite agindo para a elite, uma conversa que exclui a cultura majoritária. Uma coisa que a gente vê até hoje, as discussões sobre literatura, arte e música são restritas a uma parcela mínima da população brasileira. E isso é péssimo. Era preciso que o Brasil conversasse com o Brasil, que a cultura popular fosse também discutida.
Como seria isso?
A gente vê isso até hoje, uma série de movimentos artísticos, culturais que não são considerados. Tem quem torça o nariz para sertanejo, funk e pagode. Isso me parece uma incapacidade da cultura brasileira se discutir. E essas coisas são importantes, afetam muita gente, muita gente gosta disso. E se varre para debaixo do tapete a cultura da vasta maioria para discutir as minúcias de uma cultura de estufa. A discussão precisa ser mais honesta e transparente, há muita desonestidade intelectual atualmente. As pessoas têm discussões sem embasar seus pensamentos. A discussão está muito rasa, estamos na era da discussão instagramável. A gente precisa conversar de forma mais acessível, a conversa está entre extremos: temos estudiosos que entendem tudo mas ninguém entende o que falam e essa discussão rasa, instagramável.
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