LITERATURA

Novo livro de Francisco Bosco aborda como desemperrar o debate público

Em novo livro sobre a realidade brasileira, o filósofo e ensaísta Francisco Bosco reflete sobre a possibilidade de diálogo no campo político e social brasileiro

Nahima Maciel
postado em 26/06/2022 06:00
Escritor e ensaísta Francisco Bosco -  (crédito: Primeiro Plano/Divulgacao)
Escritor e ensaísta Francisco Bosco - (crédito: Primeiro Plano/Divulgacao)

Ao longo dos últimos quatro anos, o ensaísta e filósofo Francisco Bosco se debruçou sobre um estudo para procurar entender a deterioração do debate público brasileiro. Dessa imersão, na observação de como o Brasil tornou-se um país polarizado e regido por discussões que passam ao largo da argumentação embasada, Bosco retornou com O diálogo possível — Por uma reconstrução do debate público brasileiro. No livro, ele busca compreender como a sociedade brasileira chegou ao ponto de alimentar um debate inflamado, mistificado, agressivo e autoritário, em “petição de miséria conceitual”.

A internet teve uma parcela de culpa, mas as próprias opções políticas da redemocratização também tiveram seu papel. “Minha hipótese é que, nesses anos recentes, muito decisivos para a vida brasileira, aconteceu um fenômeno que foi a politização generalizada da sociedade brasileira”, explica. O fenômeno poderia ser comemorado, já que o próprio conceito de democracia tem como critério fundamental a participação popular. “Ocorre, entretanto, que a participação popular, que aumentou muito, se deu simultaneamente à emergência das redes digitais, um espaço muito atravessado e constituído pelo que a psicanálise chama de registro do imaginário, que é o registro do narcisismo.”

Bosco explica que a lógica de grupo instalada na sociedade brasileira é um dos impedimentos para um debate saudável. “O debate público é um lugar em que diferentes perspectivas, diferentes argumentos, evidências científicas ou empíricas, tudo isso é reunido e friccionado, argumentos contrários se chocam e por meio desse confronto as pessoas aperfeiçoam sua visão sobre determinado assunto ou fenômeno e definem suas posições”, explica.

Esse mecanismo, no Brasil, estaria emperrado e dominado pela lógica de grupo, na qual a vontade de pertencimento e aceitação é maior do que a interpretação honesta da realidade. A partir de uma perspectiva política, mas também filosófica, psicológica e social, Bosco propõe a desalienação do debate por meio da restauração do vocabulário político. Para ele, há um problema cognitivo na sociedade brasileira quando se trata de compreender o real significado de palavras como neoliberal, liberal, socialista, conservador, populista, fascista, identitário e outras que hoje estão carregadas de peso ideológico.

“Tento mostrar o que essas palavras significam nos seus respectivos campos teóricos, que são, normalmente, a sociologia, a ciência política, a história. Tento fazer com que as pessoas utilizem esse glossário fundamental da política com maior conhecimento de causa”, diz. “Minha premissa é que essas palavras, dentro do centro do novo espaço público que são as redes sociais, estão usadas de maneira extremamente falsificadas, mistificadas.” Em entrevista, Bosco fala sobre as reflexões que levaram ao livro e suas expectativas para o futuro do país.

Pode contar o que motivou a escrita de O diálogo possível?

O que me motivou foi a minha observação feita ao longo dos últimos anos de que o debate público no Brasil, cujo centro passou a ser as redes sociais, esse debate público está em um estado que chamo de disfuncional, porque a função do debate público é precisamente transformar a posição das pessoas. O debate público está emperrado. Em vez de estar produzindo transformações e aprimorando as interpretações da realidade, levando a respostas mais verdadeiras e eficientes aos desafios da realidade, o debate público tem produzido um entrincheiramento cada vez maior em posições cada vez mais fixas, que é uma outra forma de chamar o que se tem chamado de polarização. A polarização tal como estamos experimentando hoje é uma espécie de perturbação do bom estado de funcionamento do debate público. Tentei identificar as razões disso, de por que o debate público está disfuncional no Brasil.

Como a lógica de grupo explica o que estamos vivendo?

Talvez a tese principal do livro seja de que a razão principal da disfuncionalidade do debate público brasileiro seja de ordem antes psicoafetiva do que política cognitiva. Dentro desse registro, foram se formando lógicas de grupo, um fenômeno que a psicanálise estudou bastante. Quando o indivíduo faz parte de um laço de identificação grupal, seja por meio de uma religião, time de futebol, ideologia ou partido político, ele colhe benefícios psicológicos importantes. Então, para um grupo social muito fragilizado, o pertencimento grupal pode dar a esse grupo o apoio psicológico necessário para que tenha condições de lutar por suas reivindicações dentro de um debate público que normalmente lhe é hostil. Para indivíduos em geral, o pertencimento a grupos traz muitos benefícios narcísicos, aqueles que todos nós conhecemos em alguma medida ou registro das nossas vidas.

Narcisismo, gozo e reconhecimento norteiam a lógica de grupo. Qual o custo social disso?

Esse prazer do acolhimento tem um custo social alto, as pessoas tendem a sacrificar a interpretação honesta da realidade quando essa interpretação corre o risco de pôr em xeque as premissas do grupo e, logo, os prazeres que o indivíduo retira da reprodução sistemática das produções do grupo. No conflito entre a complexidade do fenômeno social e exigências de alinhamento incondicionante do grupo, o que tem prevalecido são os imperativos do grupo. E isso é um dos fatores que impedem o debate público de exercer sua função no Brasil. É como se estivéssemos girando em falso, porque cada grupo está preocupado com a manutenção das verdades do seu próprio grupo em vez de submeter essas verdades a um exame honesto da realidade, que se orienta por evidências científicas, dados empíricos, argumentos convincentes por pesquisas históricas, apresentações conceituais. Isso é o que deveria orientar o debate público e não o compromisso com o prazer proporcionado pelas lógicas de grupos.

Como a mistificação da realidade afeta o debate?

A mistificação grotesca da realidade impede qualquer conversa possível e qualquer compreensão mais correta da realidade que nos permita também receitar remédios para a realidade. Nos dois lados, acontece a mesma coisa. Assim como a direita dominante, a esquerda dominante também tende a uma caricatura das posições de direita que são igualmente complexas e variadas. O debate está muito atravessado por essas caricaturas que falsificam a realidade e nos distanciam da possibilidade de construção senão de consensos pelo menos de conflitos esclarecidos. A maioria dos conflitos que estamos vivendo nos últimos anos são conflitos irreais, falsos problemas. Então, vamos tentar identificar os verdadeiros problemas da sociedade brasileira e pensar as soluções possíveis dessa etapa inicial de desmistificação do debate.

Em que momento, na tua opinião, o debate público brasileiro começou a se degradar?

É uma história feita de diferentes temporalidades. Começando pela redemocratização, acho que teve um problema que foi o seguinte: a vida política, em geral, mas especialmente no Brasil, é feita de duas dimensões. Uma dimensão é a parasitária da política: são práticas como patrimonialismo, corporativismo, fisiologismo. É toda aquela dimensão da política institucional em que se governa e legisla em causa própria e não pensando nos grupos sociais ou tentando construir projetos coletivos. A dimensão parasitária da política sempre foi muito forte no Brasil. Outra dimensão é propriamente a política: pensar o funcionamento da experiência social das instituições e apresentar à sociedade propostas de políticas públicas no sentido de orientar a sociedade para esse ou aquele caminho de acordo com as diretrizes ideológicas propostas. Durante a democratização, dois partidos foram responsáveis por essa dimensão: PSDB e PT, que governaram o Brasil durante as melhores décadas de redemocratização.

Como isso ocorreu?

Ambos os partidos fizeram representações um do outro que eram distorcidas para fins eleitorais. Então, o modo como o PT enxergou o governo PSDB era um modo que rebaixou muito esse governo e vice versa. Isso, produziu, ao longo do tempo, uma corrosão recíproca da credibilidade de ambos os partidos na sociedade brasileira. Isso foi um dos fatores que produziu um sentimento antissistema generalizado que eclodiu em 2013. A gente entrou numa fase da crise institucional, social e cultural que levaria a esse estado de coisas. Talvez o principal acontecimento seja o impeachment da Dilma, a maior violação do princípio da autocontenção na vida política brasileira. As regras não escritas, não são leis, são certas expectativas de um comportamento que renuncie a obter ganhos eleitorais imediatos se esses ganhos forem correr o risco de corroer as bases da legitimidade do sistema político. Bolsonaro soube capturar para si esse sentimento antissistema.

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