Numa mirada pela carreira, que atravessa mais de 25 anos, o cineasta brasiliense José Eduardo Belmonte até leva em conta a possibilidade de ter sido autorreferente: "Confesso que nunca pensei nisso. Mas talvez eu não seja a melhor pessoa para ver isso", desconversa, aos risos. Daí a vivência pessoal, assumidamente, revitalizar o percurso criativo dele, como no exemplo do filme (As verdades), recém-estreado nos cinemas.
Com uma trama disposta entre os anos de 1960 e 1970, e ainda marcante em 1999, o longa-metragem O pastor e o guerrilheiro, que traz imagens do DF e do Tocantins, levará Belmonte a disputar troféus Kikito, no 50º Festival de Cinema de Gramado. "Desde O gorila (feito em 2011), não entro em competição. É mais do que uma data emblemática do Festival de Gramado, e é um evento do qual gosto muito. Além de tudo, fui separado para uma competição que achei bem forte. Gostei muito", comenta Belmonte.
Decisões dos produtores Nilson Rodrigues (da Mercado Filmes) e Caetano Curi levaram o novo longa para Gramado, depois de uma sedimentada participação de Belmonte nas edições do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, sede para disputas do diretor à frente do curta-metragem Tepê (2000) e dos longas A concepção (2005) e Meu mundo em perigo (2007). Com enredo alinhavado pelo transcorrer da ditadura militar no país, O pastor e o delegado traz, para além de imagens feitas na UnB, um evento importante marcado para ocorrer no alto da Torre de TV. "Fiquei bem feliz com o resultado", diz Belmonte, ao falar do filme que rendeu personagens para Julia Dalavia (Pantanal), Johnny Massaro (O filme da minha vida), Anna Hartman (O homem da cabeça laranja) e Cássia Kiss.
"Um filme nasce das experiências de vida. Mesmo nos filmes que vieram até mim por produtores — basicamente os que fiz na última década — me coloco bastante neles", conta, em entrevista ao Correio. Um dos elementos claros na produção de Belmonte, o trabalho com intérpretes autores, transparece no novo longa-metragem — "gosto de atores que criam o filme junto comigo", comenta. Na leva de atores do filme As verdades, que tem Bianca Bin, Zé Carlos Machado e Drica Moares, desponta o nome de Lázaro Ramos, responsável pelo recente fenômeno no cinema brasileiro, na estreia como diretor de Medida provisória. "Considero o Lázaro um dos grandes atores da atualidade: sensível e um pensador do país e do seu tempo", ressalta.
Filho de Jorge Furtado, um dos maiores expoentes do cinema nacional, Pedro Furtado responde pelo roteiro de As verdades, centrado num caso de violência e politicagem, no interior do país. "Pedro é bastante talentoso. Nunca trabalhei com Jorge, apesar de admirá-lo, mas, acho que, no roteiro, Pedro e Jorge têm estilos e talentos diferentes", observa.
Num caldeirão cultural promissor para o futuro longa Quase deserto, Belmonte alinhará o ator argentino Leonardo Sbaraglia, o astro Cauã Reymond e os roteiristas Pablo Stoll (codiretor do uruguaio Whisky) e Carlos Marcelo (editor-chefe do Estado de Minas). "Já trabalhei com uruguaios e argentinos em El hipnotizador, da HBO. Quero voltar a essa oportunidade de expandir as fronteiras. Estou muito animado com o roteiro do Carlos Marcelo e do Pablo Stoll. Se tudo der certo, rodaremos no primeiro semestre de 2023", adianta.
Entrevista //
José Eduardo Belmonte
Qual o teu panorama, como espectador, de cinema brasiliense?
Confesso que não tenho visto tanto quanto gostaria. Assisti aos mais recentes filmes da Cibele Amaral, Gustavo Galvão e René Sampaio. Gostei. Assisti também à Valentina, de um realizador que não está mais morando em Brasília, mas conheci e se formou na cidade, o Cássio Pereira, que admiro bastante. Na última vez que passei em Brasília, vi alguns curtas na UnBTV — aliás, a tevê é muito bem feita — que achei muito interessantes. Com destaque para um de Camila Shinoda, A parte que fica. Gosto de lembrar também que uma cinematografia não é feita apenas pelos realizadores, mas também pelos curadores, pesquisadores e críticos. Por exemplo, é de Brasília uma das curadoras mais interessantes que conheço: Ana Arruda Neiva. Ainda poderia citar Pablo Gonçalo, Lila Foster...
Qual o tipo de literatura e as artes visuais que mais influenciaram
teu olhar? Há quem se afirme
como referência?
Minha grande influência é o cinema. Acontece de alguns projetos nascerem de outras artes. Se nada mais der certo é muito influenciado por livros que li na época. Em As verdades, achei o tom do filme ao conhecer o trabalho do fotógrafo iraniano Hojiat Hamid. Não tem um estilo específico que me interesse. Gosto de artistas que criam universos interessantes, que me estimulem.
Em As verdades, você trata da exploração pública de crimes que vêm acobertados pelas camadas de política e de véus de impunidade. Que radar é este, capaz de antecipar desgraças debatidas atualmente
pela sociedade — com estupros,
cala te bocas, e afins?
Os últimos projetos que chegaram a mim via produtores tocam em grandes temas da realidade brasileira: o abismo social, os preconceitos, a cultura autoritária, os vários tipos de violência do país. Como vivemos há muito tempo um looping de violência, vejo que todo o filme que toca nesses temas sempre se torna atual, infelizmente. Importante ressaltar que, apesar da violência estar impregnada no tecido social, não canso de me chocar. Ainda mais com as últimas notícias. Precisa-se sempre pensar em como reagir ao choque. Pela cultura, pela educação, pelo senso de comunidade, por um posicionamento humanista.
Qual a experiência de se afundar num local inóspito ou de poucos recursos? Que riqueza brota disso?
Maraú e Itacaré (Bahia) não trazem nada de inóspito. Pelo contrário. Creio que foi umas das filmagens mais afetivas e prazerosas da vida. Tinha umas locações que eram complicadas de chegar, cenas complexas para executar, mas isso tem em quase todo filme. Comecei fazendo cinema de guerrilha, que é ótimo para dar experiência, raciocínio rápido e criatividade, mas pode ser muito frustrante também. Evito romantizar adversidades. O fato de optar por projetos com ou sem recursos são circunstâncias. Vale a máxima do Héctor Babenco: "filmar com dinheiro é tão complicado quanto filmar sem".
Como vê a cena da produção nacional? A Ancine se ajeitou, finalmente, ou enjeitou: tudo é fim de festa e oportunismo?
Vivemos um ciclo virtuoso nos últimos anos que achávamos que iria durar para sempre. Infelizmente, a realidade do cinema brasileiro sempre foi de avanços e recuos, é uma estrada acidentada. Se não me engano era o Arnaldo Jabor que falava que o cinema brasileiro estava sempre renascendo. Mas creio que agora as coisas estão sendo retomadas. O audiovisual hoje é uma indústria muito inserida no cotidiano das pessoas — mais do que quando comecei. Isso ajuda a criar uma estrutura sólida. Torço para que cada vez mais a classe politica se sensibilize para entender o quanto é estratégica a indústria do audiovisual para uma sociedade.
O auto da boa mentira trouxe uma engrenagem nutrida pelo Ariano Suassuna. O que mudou em As verdades, dotado de múltiplas versões para um enredo?
São filmes muito distintos. Não só na abordagem, mas como enxergam o tema. Um é uma crônica de costumes da mentira como estratégia de sobrevivência social. Lá, as consequências sempre resultam em confusão e a verdade aparecia de alguma forma. As verdades amplia a leitura disso. Mostra a relativização dos fatos, as mentiras como um elemento de uma cultura autoritária que sufoca as pessoas. Que não permite que a verdade venha à tona.
Religião e política nortearão O pastor e o guerrilheiro? São ingredientes à la óleo e água, na cena atual do Brasil?
Quando estava filmando Alemão 1 e sugeri uma solução de cena, lembro de um comentário de um dos produtores executivos que me marcou: "Típica ideia sua. Unir política e espiritualidade". De fato, se olhar com atenção, isso está em todos os meus filmes: em Subterrâneos (2004), creio que é mais explícito. Tenho uma visão holística sobre as coisas. Penso que está tudo interligado. Mas, sim, é importante treinar o discernimento e detectar os oportunistas que unem religião e política apenas por desejo de poder.
Que cinema e ideias são preconizadas pelo Belmonte?
Há um eixo?
Nos anos 2000, fiz filmes muito pessoais e dramáticos. Quando comecei os anos 2010, realizei basicamente filmes de gênero que chegaram a mim através de produtores. Essa opção teve um caráter íntimo (queria "sair um pouco de mim", me confrontar), político (nós, realizadores independentes, precisávamos ocupar mais espaços) e práticas (precisava viver do meu ofício). Todas as escolhas tiveram o mesmo peso. E foi interessante, porque acompanhou um processo interno de autoconhecimento. Me entendi melhor como pessoa, minhas qualidades e defeitos. Creio que me tornei um diretor com maior domínio das técnicas e meios para contar uma história. Entendi mais o mercado de cinema e suas imensas complexidades.
E que refletiu em...?
Nesse processo, quanto mais interessante era o desafio, mais achava importante aceitar. Fiz terror, comédia, drama, thriller, ação... Em cada trabalho penso que sempre enxertei drama em todos os gêneros, até porque uma das grandes motivações para os convites que eu recebia vinha do fato de que, como sou um diretor de atores, sempre havia a necessidade do elenco de pensar na densidade dramática dos seus personagens. Independentemente do gênero — e tanto nos projetos pessoais quanto nos de produtores — alguns temas sempre permearam os filmes: pessoas tentando sair do seu isolamento, tentando se conectar à realidade; grupos criando uma família não pelos laços de sangue, mas pelos afetos; e quase sempre há um personagem que tem uma fé, ainda que naïf, na utopia.
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