Cinema

Longa 'Rumo', sobre cotas raciais, é o destaque da noite no Festival de Brasília

Consagrados pelo próprio Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, em edição anterior, os diretores Bruno Victor e Marcus Azevedo retornam aos holofotes, a partir do longa Rumo, que trata das políticas de afirmação racial nas universidades do país

Foi há cinco anos que despontou de uma dupla de cineastas da cidade: Bruno Victor e Marcus Azevedo — ambos, à frente do curta-metragem Afronte, vencedores do Coelho de Ouro (do festival LGBTQIA Mix Brasil) e também, no âmbito do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, saíram consagrados pelo troféu Saruê (entregue pela equipe do Correio). Hoje à noite (16/11), no 55º Festival de Brasília, a dupla entra na competição oficial com o longa Rumo. A dupla soma outra marca, ao colocar o foco em personagens negros e da vida real: Rumo trata dos desdobramentos da política afirmativa de cotas raciais nas universidades brasileiras.

Numa edição que dará projeção à figura do ator negro Zózimo Bulbul (a ser visto diante da homenagem ao cineasta Jorge Bodanzky, autor da fotografia do longa Compasso de espera, de Antunes Filho) e que ainda trará à lembrança a atriz negra Ruth de Souza (na programação do encerramento, domingo), o Festival de Brasília colocará, ao centro, discussões sobre os 23 anos de implementação da política de cotas, a partir da visão de Bruno Victor (pesquisador ainda de multimeios) e do mestre em artes visuais Marcus Azevedo.

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Entrevista // Marcus Azevedo e Bruno Victor

Na vida de vocês, enquanto estudantes, estiveram vinculados ao sistema de cotas?

Marcus Azevedo Eu fui da primeira turma de cotas raciais na UERJ, quando fiz geografia, fui estagiário do programa Afroatitude e depois fui cotista da UnB no curso de comunicação social.

Bruno Victor Entrei na UnB por cotas raciais e também no programa de pós-graduação da Unicamp.

O que é fato e, no longa a ser exibido hoje, há componentes de ficção? Qual foi a proposta?

Marcus No filme, a narrativa da família que estuda para prestar vestibular é ficcional. Após o processo de gravação do filme, a protagonista fez vestibular e passou para o curso de artes cênicas. Há narrativa histórica.

Bruno Decidimos fabular e representar o cotidiano de uma família preta periférica. Em nosso teste de elenco, encontramos Leni Rabi, que havia passado em vestibular na UnB mas não havia conseguido cursar por questões financeiras e trabalhistas. Sua história de vida foi um importante background para criarmos sua personagem e a linha narrativa que ilustra a vida de milhares de famílias negras que lutam pelo direito à educação.

Qual a grande vitória no processo de cotas? E, por outro lado, qual o mais nefasto revés, em perspectivas destrutivas do que foi estruturado?

Marcus A grande vitória é ver as mudanças que elas proporcionaram na estrutura da universidade ao se deparar com esse contingente de estudantes negros e todo o debate que eles trouxeram. A luta pela inclusão de autores negros nas ementas dos cursos, fazer com que muitos professores tenham que se abrir para pesquisas com recorte racial, tudo se tornou ganho importante para a universidade, após as cotas. O lado nefasto de todo esse processo foi ter pessoas de destaque no pensamento intelectual, artístico e pessoas comuns que expressaram todo o seu racismo e nunca tiveram uma atitude sequer de reconhecer o quanto as suas posições em relação às cotas estavam erradas e eram frutos de um racismo estrutural que se perpetua no Brasil e tem sido cada vez mais explícito, especialmente em momentos em que os privilégios brancos são questionados.

Quais os pontos altos nessa carreira e o que esperam do festival?

Marcus O ponto alto é conseguir realizar os nossos projetos, apesar de toda a dificuldade dos últimos anos, conseguimos realizar o Rumo com o engajamento da equipe e de pessoas que nos ajudaram financeiramente no financiamento coletivo que fizemos em 2019. A perspectiva é que o festival nos possibilite mostrar o nosso trabalho, o trabalho de toda nossa equipe. A importância de ter pessoas pretas ocupando lugares de destaque na produção cinematográfica.

Bruno Após sermos censurados pelo governo de Bolsonaro, voltar ao cine Brasília com um longa metragem, logo após a sua derrota nas eleições, faz com que esse momento no Festival seja de celebração.

Qual o grande gosto de ver um filme engasgado e engajado, que passou por boicotes na produção, chegar a um dos mais prestigiados festivais de cinema do país?

Marcus O gosto é perceber que há uma curadoria que compreende a importância de determinados temas estarem no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, um festival que tem um histórico de engajamento político. Há uma demanda por temas urgentes: questões raciais, de gênero, de sexualidade, ambientais.
Bruno Tenho procurado compreender que a forma como abordamos a temática traz diversas possibilidades de reflexões. Nossa proposta artística de lidar com temas urgentes revela que nosso processo criativo dá relevo aos debates sociais. Observar nosso trabalho como potência criativa, inventiva e política tem sido uma luta para que sejamos vistos como profissionais do audiovisual brasiliense.

O que representa a UnB para você?
Marcus A UnB representa encontros, é um lugar onde tive dinâmicas importantes pessoas como o Bruno e a Edileuza Penha de Souza (auora do documentário Filhas de lavadeiras, curta premiado no Festival É Tudo Verdade), que se tornaram grandes amigos e parceiros de trabalho.

Como galgaram a realização em cinema?

Bruno O nosso processo criativo sempre foi de grande parceria desde a Universidade. Nosso primeiro filme, o Afronte (2017) permitiu uma grande circulação do nosso trabalho pelo país e em algumas importantes janelas internacionais. A partir dele, criamos oficinas de roteiro, artigos acadêmicos, oficinas de audiovisual para quilombolas. Essas realizações extrapolam o fazer do cinema, aqui compreendendo o quanto tem sido importante passar nosso conhecimento para outros profissionais negros, para que, em algum momento, tenhamos um cinema nacional menos branco e mais parecido com sua população. Nosso desejo, agora que criamos nossa empresa a Afronte Faz, é que tenhamos a possibilidade de ter futuras produções com maioria de profissionais negros, assim como foi na produção do nosso longa-metragem Rumo.

A questão da negritude será valorizada pelo governo Lula. Na opinião de vocês, haverá muitas mudanças à vista?

Marcus Sim — assim como foi, no primeiro mandato dele, com a criação da Seppir (Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial), a aprovação da lei 10.639 e tantos outros. Acredito que as mudanças trazidas pelas cotas raciais e outras políticas raciais fará com que esse tema tenha centralidade no governo Lula por conta da pressão dos movimentos negros. Espero que, após tudo o que se viveu no Brasil, o governo Lula tenha compreendido a necessidade do debate racial para se estabelecer novos marcos sociais no país.
Bruno É de extrema importância que o novo futuro governo incorpore diversos profissionais negros em sua equipe. Não somente em pastas de recortes raciais, mas em pastas econômicas e de saúde, por exemplo. Os temas universais comuns à sociedade devem ser debatidos e representados de maneira igualitária e com a presença de negros.


55º Festival de Brasília do Cinema Brasileiro

No Cine Brasília (EQS 106/107), e nos centros culturais de Samambaia e de Planaltina, mostra competitiva, com o longa Rumo (DF), de Bruno Victor e Marcus Azevedo, e os curtas Calunga maior (PB), de Thiago Costa, e Sethico (PE), de Wagner Montenegro. No Cine Brasília, com entrada franca, às 18h, programação da Mostra Brasília.

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Afronte Faz/Divulgação - Rumo: concorrente na mostra competitiva
Afronte Faz/Divulgação - 'Rumo' foi exibido ontem na competição
Afronte Faz/Divulgação - Bruno Victor Marcus Azevedo