Luz del Fuego desafia a sociedade carioca ao tentar entrar de penetra, e fantasiada de Eva, no baile de carnaval do Theatro Municipal do Rio de Janeiro. Amuado com a iminente morte do pai internado em um hospital da mesma cidade, Marco Nanini, vestido de soldado Pacífico, personagem de AS desgraças de uma criança, distribui cafezinho para a plateia e não hesita: “Meu pai está morrendo de câncer, e vocês aí, se divertindo à minha custa”. O público se abre em gargalhadas e o ator que, chegava do hospital direto para o palco, respira aliviado. O português falado no Brasil — o brasileiro, para os menos puristas — seria uma nova língua ou ainda é a mesma falada no país europeu que colonizou o Brasil? E aquele artista chinês que foi perseguido, censurado e ameaçado depois de afrontar o regime com obras que questionavam verdades oficiais? O que ele teria a dizer sobre liberdade? O carnaval bate na porta, é urgente, há praticamente três anos ele foi expulso por um vírus, mas tem quem queira dividir a folia com um pouco de leitura e o Diversão&Arte fez uma seleção de títulos recém-lançados que merecem roubar um pouquinho da atenção dedicada ao Momo. Todos merecem confetes, todos vão colar o leitor no sofá.
O avesso do bordado — Uma biografia de Marco Nanini
De Mariana Filgueiras. Companhia das Letras, 342 páginas. R$ 119,90
Ao completar 70 anos, Marco Nanini achou que tinha vivido muitas coisas e quis deixar isso escrito. Procurou então a Companhia das Letras, que convidou a jornalista Mariana Filgueiras, ex-repórter de cultura de jornais nacionais, para escrever. Curiosamente, apesar da vasta experiência na área, Mariana nunca havia entrevistado Nanini, mas isso faz pouca ou nenhuma diferença no resultado: O avesso do bordado é dessas biografias que contam a história de um ator genial, de um país em ebulição, de uma cena altamente fervilhante e que, por tudo isso, não larga a mão do leitor. “Ele me contou que queria deixar a história escrita. Passamos a encontrar toda semana, eu queria muito mais acompanhá-lo nas gravações, ele como espectador, fui muito ao teatro com ele. Queria vê-lo em ação, mais do que ele narrando a vida dele para mim”, explica Mariana.
A vida muito bem documentada do artista foi de grande ajuda para a jornalista, que dividiu o texto em três partes: os primeiros anos, o desenvolvimento do ator e a experimentação após ter a carreira estabelecida. “A vida pessoal do Nanini foi conduzindo para essa profissão”, acredita a autora. Filho de um gerente de hotel, o ator nasceu em Recife e morou em Salvador, Manaus e Belo Horizonte antes de fincar pé no Rio de Janeiro, sempre vivendo nos hotéis administrados pelo pai. “O fato de ter morado em hotéis, o desenvolvimento de toda a sensibilidade estética, poética, a criança que se percebe sensível para beleza, para as artes, para a música, a primeira parte é a construção da estrutura do ator”, diz Mariana. Após se firmar na carreira, Nanini passou a fazer coisas mais ousadas e experimentais, que são exploradas na última parte do livro.
Mesmo tendo contado com o auxílio da memória viva e muito organizada do ator, Mariana não dispensou a pesquisa e as entrevistas. Ela conversou com amigos, diretores e colegas de trabalho de Nanini para dar à biografia uma dimensão além daquela delineada pelo próprio biografado. “Para penetrar na subjetividade de alguém, você precisa ter a perspectiva da pessoa para os fatos. Ter a sorte do biografado estar vivo faz com que você possa contar com a subjetividade dele. Tenho o ponto de vista dele”, acredita. “Mas ele nunca me impediu ou deixou tolhida. Ele me deixou totalmente à vontade para contar as histórias que apurei, e várias ele não me contou, eu descobri.”
Latim em pó —Um passeio pela formação do nosso português
De Caetano W. Galindo. Companhia das Letras, 228 páginas. R$ 59,90
Caetano Galindo tinha vontade de resumir em livro o que vem lecionando há 25 anos na Universidade Federal do Paraná (UFPR), mas também queria agregar mais um ponto ao projeto Língua Brasileira, organizado por Felipe Hirsch, do qual participou e que rendeu uma peça, um disco de Tom Zé, um filme e uma série de eventos no Museu da Língua Portuguesa. Nasceu dessa confluência o Latim em pó, um livrinho muito simpático e surpreendente que chegou para ensinar que não existe língua mãe ou um idioma superior a outro.
A história do português falado hoje por mais de 210 milhões de brasileiros é o fio condutor desse ensaio. É uma história que tem passagens pela Roma antiga, esbarra no latim, é profundamente marcada pelo colonialismo e encontra até explicações no trabalho minucioso de espécies de arqueólogos da língua. “O português brasileiro e o europeu são uma língua, ou duas?”, pergunta o autor que, no início do livro, faz uma reflexão sobre fronteiras impostas às línguas, divisões muito difíceis de serem compreendidas e, muitas vezes, carregadas de vieses políticos. “O romeno e o moldavo eram a mesma língua numa semana e na outra, por motivos políticos, eram idiomas diferentes. E o que fazer das línguas de contato, o yopará é espanhol com guarani ou é uma nova língua?”, questiona Galindo, que também reflete sobre a influência da política no uso dos idiomas e sobre os aspectos fascinantes do próprio português.
Três perguntas para Caetano Galindo
Fatores políticos interferem mais em uma língua do que fatores sociais? Como funciona essa dinâmica?
A sociedade é rainha. A língua é um fato cultural e, como tal, sempre acaba se movendo mais e melhor do que a legislação. Mas a política (como em outros fenômenos sociais) tem também seu papel nessa história. Às vezes “devido” e às vezes desmedido.
O que mais te fascina no português brasileiro?
No meu caso, esse estudo sempre pareceu acrescentar “profundidade” à língua que a gente usa. Como se o fenômeno de repente ficasse 3D. Saber que uma palavra passou por caminhos tortuosos, que ela representa a fusão de várias línguas, que ela carrega uma história de contatos e de interferências.... isso tudo não precisa mudar o que a gente usa hoje (etimologia não é “verdade”, é só o passado), mas pode, sim, revestir tudo de uma camada ainda mais luminosa.
Qual o aspecto mais fascinante de estudar a origem dos idiomas, da linguagem e da fala?
Além das características internas da língua, que poderiam fascinar qualquer linguista, em qualquer cultura, o que mais me fascina no PB é o fato de ele ser a minha língua. De ele ME ser de um jeito que é até difícil de a gente mensurar, né? E de a gente ser tudo que ele embute, tudo que ele carrega, de contatos, de violências, de silenciamentos e de discretas sobrevivências dessas vozes silenciadas.
1000 Anos de alegrias e tristezas — Memórias
De Ai Weiwei. Tradução: Camilo Adorno. Companhia das Letras, 366 páginas. R$ 99,90
Ai Weiwei tinha pouco mais de 10 anos quando o pai, poeta e intelectual chinês, entrou para a lista de pessoas não desejáveis do regime chinês. A família do artista acabou isolada, primeiro em uma cidade remota aos pés de uma montanha, depois nas bordas do deserto siberiano. É com essas lembranças que Weiwei dá início a esse livro de memórias. Hoje um dos expoentes mais importantes da arte contemporânea mundial, o artista mergulha nas lembranças mais antigas para contar sua própria história.
China socialista, a Revolução Cultural, a perseguição ao pai e, mais tarde, a ele mesmo, a criação em meio à consciência artística e literária, a construção de uma trajetória na arte mundial e o exílio estão no livro. A linguagem poética é um dos diferenciais da narrativa de Weiwei, que parece beber na poesia do próprio pai para reconstituir um passado nem sempre iluminado.
Luz del Fuego
De Javier Montes. Tradução: Silvia Massimini Felix. Fósforo Editora, 262 páginas. R$ 84,90
O leitor não deve esperar de Javier Montes uma biografia tradicional. Não se trata de narrar cronologicamente o nascimento, ascensão e morte de Luz del Fuego. Pende mais para o ensaio o texto desse livro que, à sua maneira, investiga a vida de Dora Vivacqua, a atriz que encantava serpentes, se apresentava nua e morava na Ilha do Sol, próxima à Ilha de Paquetá.
Assim como a vida nada convencional da própria Luz del Fuego. o livro de Montes, autor espanhol listado pela Granta na publicação Os melhores escritores jovens de língua espanhola, foge da abordagem clássica e se perde entre os gêneros viagem e biografia. No entanto, dá conta de apresentar essa personagem que causou furor no Brasil dos anos 1940 e 1950.
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