Literatura

A literatura fantástica de Campos de Carvalho é redescoberta

Em 'O púcaro búlgaro', o escritor mineiro utiliza uma suposta expedição para atacar os lugares comuns em uma festa anárquica regida pelo nonsense

Severino Francisco
postado em 22/02/2023 06:08 / atualizado em 22/02/2023 06:22
 (crédito: Maria Amélia/Arquivo pessoal. )
(crédito: Maria Amélia/Arquivo pessoal. )

Sob o pretexto de encontrar um insólito objeto, em O púcaro búlgaro, o mineiro de Uberaba Campos de Carvalho criou uma das ficções mais inventivas, livres e provocadoras da literatura brasileira moderna. A suposta expedição à Bulgária é o pretexto para uma viagem da imaginação em uma trama regida pelo absurdo. "Copacabana é um bairro onde se pode viver tranquilamente, desde que se esteja louco". Ele viaja para provar que a Bulgária não existe. O narrador-protagonista se envolve em um labirinto de digressões que subvertem completamente a lógica e colocam em suspensão a realidade: "Um escritor que nem sequer conseguiu escrever, um herdeiro que não herdou nada que prestasse, um cidadão que nasceu numa cidadezinha e acabou sendo menor que a sua cidade, um desmemoriado para as coisas sem importância e agora para as mais importantes", se autodefine o narrador-protagonista.

O púcaro búlgaro está de volta, depois das reedições de A Lua vem da Ásia, A chuva imóvel e A vaca do nariz sutil, todos pela Editora Autêntica. É relato do que se passou e sobretudo do que não se passou, diz o narrador, como se reescrevesse Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, ou Tristan Shandy, de Laurence Sterne, com uma mirada de nonsense: "O que se convencionou chamar a Bulgária é sobretudo um estado de espirito", diz o narrador de O púlcaro búlgaro. "Como Deus, por exemplo. Mesmo que ficasse um dia definitivamente demonstrada a inexistência da Bulgária, ou das Bulgárias, ainda assim continuariam a existir os búlgaros — do mesmo modo como existem os lunáticos que nunca foram e jamais irão à Lua."

Narrativa hilariante

O narrador de O púlcaro búlgaro ataca, de maneira irônica e ferina, o senso comum, os valores tradicionais, as verdades prontas e os lugares comuns, em uma festa anárquica do pensamento de tom hilariante. "O que antes era a consciência, o anjo da guarda de cada um, hoje se chama o transístor: coisas da era nuclear ou eletrônica. Você deixa que os outros pensem por você e decidam sobre o que você deve fazer: e como os outros, por sua vez, estão deixando que alguém pense ou decida por eles, acaba ninguém pensando nem decidindo por coisa nenhuma, o que é justamente o que o governo quer e faz o possível para que aconteça. Daí a Fábrica Nacional de Transístores, e daí a voz do espíquer que é a voz do governo anunciando sabonetes e uma era de franca prosperidade — para ele naturalmente."

A viagem da imaginação de Campos de Carvalho é sempre armada de uma visão insubmissa e irreverente: "Não adianta querer ou não protestar. Se não fôssemos de certo modo e até certo ponto búlgaros, não estaríamos aqui tão interessados em provar a existência ou a inexistência da Bulgária, e estaríamos antes cuidando de ir descobrir Portugal, o estado de Massachusetts, o Cáucaso ou simplesmente as pernas da vizinha ou da empregada, que estão cobertas justamente para que as descubramos."

Campos de Carvalho (1916-1988) nasceu em Uberaba, Minas Gerais, trabalhou como procurador da Justiça em São Paulo, morou no Rio de Janeiro e viveu o tempo todo recluso. Era tão estranho e desconcertante quanto os seus personagens. Concedeu raríssimas entrevistas, não gostava de tirar fotos, não fazia política literária e detestava badalações ou glórias falsas. Todas as suas obras foram produzidas entre 1956 e 1968.

Ele foi redescoberto pela editora Maria Amélia Mello. Ela conheceu a obra do escritor mineiro na época em que era resenhista dos suplementos literários da Tribuna da Imprensa e do Jornal do Brasil: "Fiquei muito encantada com a linguagem, a maneira como ele descreve as cenas. Ele tem muito humor, não é escancarado, mas é sutil, com um nonsense que escapava completamente da literatura realista brasileira. Tinha um clima fantástico de J.J. Veiga e de Victor Giudice."

Em uma reviravolta do destino, na década de 1980, Maria Amélia se tornou editora da José Olympio, lembrou-se de Campos de Carvalho e começou a perguntar onde ele estava: "As pessoas o confundiam com José Cândido de Carvalho, autor que também editei. Ninguém mais sabia quem era Campos de Carvalho. Alguém me disse que ele morava em Petrópolis. Fui até lá, o porteiro me contou que ele estava morando em São Paulo, perto do Incor, Instituto do Coração. É que Campos de Carvalho tinha muito medo de morrer do coração e resolveu morar perto do Incor. Mexi daqui e dali e encontrei a casa onde ele morava. Ficou muito feliz ao saber que eu queria reeditar os livros dele", disse a agora curadora das obras do escritor mineiro.

Reedição das novelas

Na José Olympio, Maria Amélia reeditou as quatro novelas de Campos de Carvalho: A vaca do nariz sutil, A Lua vem da Ásia, A chuva imóvel e O púlcaro búlgaro. Recentemente, quando se transferiu para a Editora Autêntica, a editora republicou todos os volumes em edições esmeradas: "Mesmo morto continuarei dando o meu testemunho de morto. Esta chuva imóvel serei eu que estarei cuspindo", escreve Campos de Carvalho em A chuva imóvel. Maria Amélia comenta: "Tem alguma coisa de poesia na ficção dele. A chuva pressupõe movimento".

Maria Amélia visitou Campos de Carvalho diversas vezes em São Paulo. Viveu cenas de nonsense tão inquietantes quanto as da ficção do escritor mineiro: "Ele era fechado, não tinha filhos, vivia com a esposa, dona Lygia. Havia uma coisa engraçada. Dona Lygia tinha dificuldade de ouvir, e Campos se recusava a falar. De vez em quando, ele dizia uma coisa absurda do tipo: 'vai chover amanhã, não sei que horas, mas com certeza será às quatro da tarde'. Aí, eu disse para ele: 'Se não chover, o trem vai descarrilhar'. Ele soltou uma risada e, partir daquele momento, a nossa conversa se despiu da cerimônia e se tornou um diálogo de pessoas normais".

O primeiro parágrafo de A Lua vem da Ásia é bastante revelador do espírito anárquico de Campos de Carvalho: "Aos 16 anos, matei meu professor de lógica alegando legítima defesa. E que defesa poderia ser mais legítima?" Em O púlcaro búlgaro, ele faz uma expedição à Bulgária para provar que ela não existe. O último capítulo é intitulado Partida, mas se trata não do fim, mas de uma partida de cartas: "Ele é desconcertante. Em nossas conversas, nunca falou sobre os seus livros. Percebi que ele tinha certa mágoa de não ser reconhecido, sabia que tinha talento e era original. O interesse pela obra dele está crescendo. Mas ele precisa e merece alcançar um público mais amplo".

O púlcaro búlgaro

 De Campos de Carvalho/Ed. Autêntica/110 páginas/R$ 59,80

 

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  • Campos de Carvalho no traço de Uendell Rocha
    Campos de Carvalho no traço de Uendell Rocha Foto: Uendell Rocha
  • Crédito: Autêntica. Capa do livro O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho.
    Crédito: Autêntica. Capa do livro O Púcaro Búlgaro, de Campos de Carvalho. Foto: Autêntica
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