Entender melhor o Rio de Janeiro e sua história para fazer filmes e até para viver de maneira mais consciente o espaço urbano que retratava e ocupava levou o cineasta Roberto Moura a escrever Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro. Antes de virar livro, o tema rendeu ao cineasta alguns filmes, especialmente nos anos 1970, em torno da história e da identidade da capital fluminense. Fundador da Corisco Filmes, Moura fez da produtora, localizada no centro do Rio, um polo de informações sobre a cidade.
O livro foi publicado pela primeira vez em 1983 e ganhou uma reedição nos anos 1990 até chegar ao formato atual que a Todavia devolve às prateleiras. Não é no Rio que Moura dá início à pesquisa e ao texto, mas em Salvador, de onde parte para investigar a diáspora baiana de escravos e libertos em direção à capital fluminense no século 19. Da Bahia veio Tia Ciata, ou HIlária Batista de Almeida, mãe de santo, filha de Oxum, espécie de mãe do samba e embaixadora da cultura afro no Rio de Janeiro pós-abolição.
É sobre toda a cena que rodeia Tia Ciata, antes e depois da personagem se tornar emblemática, que Moura concentra o livro. Na casa dessa baiana de Santo Amaro da Purificação, o samba encontrava voz e proteção em um tempo em que o gênero era proibido e demonizado. Djonga e Mauro de Almeida teriam composto Pelo telefone nos salões de Tia Ciata, numa casa na Praça Onze, região então conhecida como Pequena África. Sinhô e João da Baiana também eram frequentadores dos saraus, alvos constantes da polícia carioca, já que samba era coisa de bandido. "Ciata era uma referência no meio dos baianos que se expandia, influenciava, absorvia — no Rio", conta Moura. "Ela — Hilária, junto ao quase seu homônimo, Hilário Jovino — viveram momentos decisivos, optaram por atitudes, assumindo a responsabilidade frente aos seus, que construíram o curso que as coisas tomaram, repercutindo em toda cidade, em todo um país." Abaixo, Roberto Moura conta sobre a pesquisa realizada para o livro e as atualizações para a nova edição.
Entrevista // Roberto Moura
"Uma história mal contada ou omitida, que só aparece no pragmatismo estatístico dos serviços sanitários ou da repressão, ou em constantes estereótipos da nacionalidade surgidos na arte popular filtrada pela indústria de diversões": como evoluímos nesse aspecto nas últimas décadas? Ainda estamos estacionados nessa equação?
Em termos de compreensão e relato certamente avançamos, essa nova edição é exatamente o diálogo com toda uma historiografia que foi produzida depois, me trazendo informações que me permite fazer novas suposições que justificaram essa terceira edição do livro.
Desde a primeira publicação desse livro, nos anos 1980, até essas primeiras décadas do século 21, o que, na tua opinião, mudou na maneira como pesquisamos, nos debruçamos, retratamos e refletimos sobre a "pequena África" brasileira e sobre a nossa negritude, sobre nossas
origens culturais?
A questão da Pequena África hoje é marcada por uma série de conquistas a partir do Quilombo da Pedra do Sal, Okuta Io, da organização de uma malha de organizações religiosas e festeiras como memorialistas, a que se junta uma multiplicidade de bares musicais em torno do Largo — a última música do Chico fala dele. Uma Pequena África que está sendo absolutamente omitida nos projetos intitulados pela Prefeitura de Porto Maravilha. A Pequena África antecede e poderia muito de beneficiar de novos projetos de revitalização da Zona Portuária do Rio de Janeiro, desde que a considerassem e dela se beneficiassem como uma Nova Orleães do crucial, emblemático, samba carioca.
O que mudou em relação à resistência que se tinha à cultura popular no século 19 e hoje?
Há um evidente avanço em termos de conscientização popular, seja na mídia como na universidade, mas continua a absoluta desigualdade entre os brasileiros, comunidades em torno do Rio vivendo uma miséria herdada da escravidão, que repercute na rua, no metrô, na praia.
Em perspectiva, como você vê a história que conta no livro em relação ao que acontece hoje no Brasil?
Essa a mágica da história, de articular a passagem do tempo enquanto determinados acertos, achados, costumes da cidade constroem-se numa determinada sucessão, a cada momento podendo-se perceber vários futuros possíveis. No caso do Rio de Janeiro, uma proposta de compreensão, acerto e encontro que vivemos a partir dos anos 1950 perdeu-se. Mas agora reconstroem-se novas possibilidades — estou muito isolado no meu trabalho entre alguns amigos para poder falar com pertinência disso.
Como encara a legitimidade do samba que se faz hoje no Brasil?
Tive uma sensibilidade pelo samba construída no encontro com Cartola, com quem fiz um filme — ele co-roteirista me pediu para tirar esse crédito dele, porque "era feio escrever o roteiro de um filme sobre si mesmo..." —, e, pós-mortem um livro, e com um grande amigo e parceiro até hoje, Gustavo Praça — encontros formadores, inspiradores. Cartola, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Paulinho da Viola, Elton Medeiros são minhas referências e prazeres. Vieram grandes sambistas depois, como o finado Wilson Moreira e o vivíssimo Ney Lopes, mas novamente vou me declarar incapaz de avaliar a "legitimidade do samba que se faz hoje".
A história do samba é uma história do Brasil? E como o Brasil está presente nas letras?
Tem trabalhos bastante interessantes sobre isso. Uma história do Brasil republicano, na reverência como na insubmissão nos samba-enredo, uma história dos anos da escravatura no imaginário da macumba carioca. Um universo de pesquisas necessárias, reveladoras de um passado e um presente por onde impávidos seguimos.
E como o senhor encara hoje o carnaval no Rio de Janeiro, a partir da perspectiva contada pelo livro?
Da carnavalização e da construção de tradições urbanas de iniciativa dos negros, à hegemonia de uma máfia na organização do carnaval com a prefeitura — vai uma distância que o livro omite, prudentemente parando em torno dos anos 1930.
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