Artes visuais

Historiadora investiga mistérios de painéis de Volpi na Igrejinha de Brasília

Historiadora de arte e pesquisadora, Graça Ramos investiga a história dos painéis de Alfredo Volpi na Igreja Nossa Senhora de Fátima, da Entrequadra 307/308 Sul

Nahima Maciel
postado em 11/03/2023 06:00 / atualizado em 11/03/2023 11:26
Altar da Igrejinha, com as 12 bandeirinhas de cada lado -  (crédito: Arquivo Público)
Altar da Igrejinha, com as 12 bandeirinhas de cada lado - (crédito: Arquivo Público)

Muitos enigmas cercam os painéis projetados por Alfredo Volpi para as paredes da Igreja Nossa Senhora de Fátima, na 308 Sul. O artista criou cinco esboços para os afrescos da igrejinha projetada por Oscar Niemeyer, que escolheu três. Sabe-se que, com certeza, duas paredes do prédio em formato triangular acabaram pintadas. O que teria havido com a terceira? Ela foi pintada e apagada? Ou nunca chegou a ser feita? Esse é um dos primeiros mistérios que cercam a obra e, com essa interrogação na cabeça, a historiadora de arte e pesquisadora Graça Ramos começou a investigação que resultou no livro O apagamento de Volpi — Presença em Brasília, publicado pela Tema Editorial e com lançamento marcado para dia 14 de março, no Gentil Café

Niemeyer escolheu três composições, mas os registros levam à realização de apenas dois painéis. "Acho que essa terceira parede não foi pintada porque, nas fotos do casamento inaugural da igreja, não aparece pintada, nem nos filmes da inauguração", diz a autora "Nas matérias iniciais fica claro que ele foi contratado para pintar duas paredes. Tem muitos questionamentos que eu me fiz ao longo da pesquisa, não tenho a posição de senhora absoluta do saber. O importante é a gente se dedicar a tentar entender."

Outro mistério, que na verdade está mais para uma lacuna, é a falta de interpretação da obra criada por Volpi disponível na literatura ligada à história da arte brasileira. O apagamento de Volpi tenta preencher esse vazio com uma análise bastante embasada dos desenhos criados pelo artista, que não era católico, mas, de certa forma, se preocupou em estudar simbologia religiosa ao conceber os painéis. Na parede esquerda de quem está de frente para o altar, formas retangulares finalizadas com um vértice superior lembravam, de acordo com a pesquisa de Graça, portas com arcos.

Graça Ramos: busca obsessiva pela reconstituição do apagamento de Volpi na Igrejinha da 308 Sul
Graça Ramos: busca obsessiva pela reconstituição do apagamento de Volpi na Igrejinha da 308 Sul (foto: Fotos: Paulo Negreiros - Arquivo Nacional - Tema Editorial - Mario Fontenele)

Sobre elas, pairavam grupos de bandeirinhas, as mesmas que se repetiam no painel ao fundo, este destinado ao altar e com a imagem de uma nossa senhora a flutuar ao meio. "O que Volpi ofereceu não foi entendido. Acho que ninguém se preocupou em ler, a reação foi à bandeirinha. Ele foi lido como ingênuo, profano, porque usou bandeirinhas de São João, infantil. Mas ele pega a simbologia católica e faz dela uma nova ideia, ele se apropria de símbolos católicos, faz uma codificação, e ninguém soube ler isso", lamenta Graça. Dos três esboços escolhidos por Niemeyer, em um deles Volpi trabalhou com a lógica do ternário para a disposição das bandeirinhas, que acabam por somar 33, número importante para a narrativa católica. Ao realizar a obra, no entanto, ele abandona a sequência de números primos e pinta 37 bandeirinhas.

Uma das perguntas sobre a qual a historiadora reflete durante a pesquisa é o porquê dessa decisão. Ao lado da imagem da santa, que levita ao centro do altar, há 12 bandeirinhas de cada lado, número que, na igreja católica, é associado a Nossa Senhora.

"Na parede que dá para a 308, interpreto que ele começa com três bandeiras como referência às três crianças que veem a santa", explica Graça, ao lembrar das aparições de Nossa Senhora de Fátima em Portugal, em 1917. O número de bandeiras aumenta, na interpretação da autora, numa referência à ampliação do círculo de pessoas que teriam presenciado a aparição, para depois retornar às três crianças.

A reação aos painéis foi tão ruim que eles acabaram apagados, em 1962, apenas quatro anos após serem criados. "A rejeição das pinturas do Volpi mostra o primeiro choque cultural de Brasília. É como se a cidade saísse da prancheta e enfrentasse o teto do real. É preciso contextualizar: era uma cidade incipiente, com boa parte da população sem conhecimento de arte, sem formação cultural que permitisse fazer uma leitura diferenciada, e essa má vontade com a pintura foi cristalizada", analisa. "Me preocupei em documentar essa perda porque acho que a cidade precisa tomar consciência do tamanho da perda. Tínhamos uma igreja com uma coisa nova para o Volpi, de simbolizar a transcendência."

Graça faz ainda uma nterpretação da parede não pintada, ou de um dos esboços propostos, partindo de imagens, mas também de um texto de Mario Pedrosa, um dos poucos que escreveu sobre a obra, ainda no final dos anos 1950. Segundo Pedrosa, os desenhos traziam um anjo, um boi, um leão e uma águia, todos alados, que corresponderiam aos evangelistas."O que proponho é que o Volpi, que não era religioso nem crente, conhecia um pouco da tradição católica, e propõe uma forma muito próxima a uma imagem que remete ao que os primeiros cristãos faziam: o tetramorfo, símbolo cristão usado nas igrejas primitivas", diz Graça. "Defendo que, de certa forma, o que ele estava propondo ali, ainda que de forma alegórica e livre, era uma aproximação à própria tradição religiosa, mas numa linguagem moderna." Esses seres aparecem na iconografia cristã antiga e foram, mais tarde, associados aos evangelistas, os apóstolos que escreveram os evangelhos.

Boa parte da pesquisa foi realizada durante a pandemia. Entrevistas por vídeo e consultas a hemerotecas digitais fizeram parte do processo, que esbarrou em vários desafios. "Acho que tentar achar uma imagem dessa terceira parede, porque eu tinha dúvidas se tinha sido pintada ou não, foi o mais difícil. Perdi muito tempo nisso, fiquei obsessiva, só pensava nisso, sonhava com isso", conta Graça. De alguns arquivos, ela não conseguiu respostas, especialmente o de fotógrafos e cineastas que passaram pela cidade entre 1956 e 1961 e que poderiam, eventualmente, ter registrado os painéis. "Escrevi para vários arquivos, e, por incrível que pareça, não recebi nenhum retorno. Aí pensei: 'tenho que acreditar no que vejo e o que vejo em filmes e fotos é que essa parede não foi pintada'. Mas se tivesse sido pintada ficaria linda!", conta. "E não tive acesso aos arquivos da igreja. A igreja não permitiu". Ela encontrou apenas um texto, assinado pelo então arcebispo de Belém, Dom Alberto Ramos, no qual descreve a obra como "as infelizes pinturas de Volpi". "Mas ele não interpretou", diz Graça.

Em 2009, os painéis há décadas perdidos foram restaurados, mas com um desenho novo, assinado pelo artista Francisco Galeno, convidado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), responsável pelo tombamento da Igreja Nossa Senhora de Fátima, para recriar a obra. A reação dos brasilienses continuou ruim. No entanto, a obra foi mantida e protegida. "Em 1960, a democracia estava começando a se fragilizar. E em 2009, as instituições estavam mais fortalecidas. Hoje há um retrocesso maior que o de 1960 porque a destruição, agora, é total", compara Graça, ao lembrar da destruição do patrimônio provocada pelos protagonistas dos atos antidemocráticos de 8 de janeiro.

  • Altar da Igrejinha, com as 12 bandeirinhas de cada lado Arquivo Público
  • Vista aérea da Igrejinha recém-inaugurada, agosto de 1958 Mario Fontenele
  • Painel da parede lateral Arquivo Nacional
  • Capa de O apagamento de Volpi - Presença em Brasília, de Graça Ramos Tema Editorial

O apagamento de Volpi — Presença em Brasília

De Graça Ramos. Tema Editorial, 238 páginas. R$ 65. Lançamento dia 14 de março, às 18h no Gentil Café (CLS 410, Bloco B)

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